Por Pedro Antunes
Caetano Veloso sorri com a lembrança. Antes mesmo de contar a história, já se divertia com o filho do meio, irmão mais novo de Moreno (de 45 anos) e mais velho do que Antônio Carlos, o Tom (de 21). “Eu tinha uns 19 anos quando compus Coração Vagabundo”, diz o cantor e compositor baiano, antes mesmo de chegar à história, como se já se desculpasse. Como se Zeca Veloso, de 26, o protagonista da história, tivesse certa razão nela. “E sempre gostei dessa música. Era uma que, por mais que eu tivesse tocado ela em tantos momentos, eu sempre gostei. Até que chegou um dia e Zeca, olhando para mim, diz: ‘Pai, eu não gosto de Coração Vagabundo’.”
Ainda rindo, Caetano observa ao redor. Os presentes no camarim dele, montado atrás do palco ocupado por ele e os três filhos no show chamado Ofertório, poucos minutos antes, no domingo passado, 26, no Breve Festival, realizado em Belo Horizonte. Ninguém sabia se era para parar de rir, se indignar. Na verdade, a história foi perfeita para explicar quem era Zeca Veloso, o objeto de curiosidade e culto por parte do público – que já ultrapassa os 40 mil, se somados todos os shows da turnê iniciada em outubro do ano passado. Porque Zeca é, segundo o pai e os irmãos com quem ele divide o palco, um sujeito que se cobra muito e que cobra os outros na mesma medida. Alguém que diria a Caetano Veloso, ou ao pai, que simplesmente não gosta de determinada canção. Essa, aliás, não foi a única vez – possivelmente não será a última.
Ele, mesmo, admite isso. Sozinho, ele desce para a sala de convenções do hotel no qual a família estava hospedada, horas antes da apresentação no festival. Não chega com ele a horda de assessores, produtores e qualquer outro profissional que sirva para blindá-lo, de alguma forma. Encontra a equipe do Estado ainda com um saco de 100 g de amendoim do tipo japonês e uma água de coco em caixinha de 200 ml. Vestia uma malha fina azul-marinho, uma calça jeans e um par de tênis brancos. Pediu desculpas pelo atraso. “Não almocei ainda. Precisava descansar um pouco”, ele explica. Era recomendado para que ele falasse em um volume mais baixo, para poupar a voz que encanta em um falsete solo logo na segunda música do show, chamada O Seu Amor, mas ele mantém o volume habitual, sereno e nada fora do normal.
De fala pausada, Zeca parece aproveitar cada milésimo de segundo em silêncio para escolher qual é a melhor palavra para vir a seguir. Por vezes, ao longo do papo, ele prefere deixar o silêncio dominar o ambiente enquanto elabora uma frase ou seu pensamento. “Às vezes, até gosto de complementar por e-mail, porque não lembro de algo na hora, mas, tempos depois, a resposta me vem e eu posso complementar”, conta. Noutras vezes, ele prefere o silêncio a responder algo de que vá se arrepender.
Entre os seus, contudo, ele não se furta em falar o que pensa. “Se o Zeca não gostar do que estou vestindo, ele vai reclamar, certamente”, diz Tom, o mais novo. Tom e Zeca são filhos de Caetano com Paula Lavigne. Embora estejam juntos, faz uns cinco anos, lembram os filhos, que os pais moram em casas diferentes. Os irmãos também. Zeca com um (o pai), Tom com outra (a mãe). “Mas nos falamos quase diariamente”, explica o Veloso caçula.
É Tom quem ouve as composições de Zeca durante as construções. Assim foi na primeira composição do irmão, apresentada para Tom e Caetano. O pai não gostou e Zeca logo dispensou a composição – “era boba”, ele lembra. A segunda foi Todo Homem, música com a qual Zeca de fato se apresentou ao grande público na turnê. Sozinho até os segundos finais da execução da música no palco, ele canta seu falsete sobre a fragilidade e ausência. A música ganhou destaque na trilha da supersérie Onde Nascem os Fortes, da TV Globo.
Tão duro e crítico consigo como é com os outros, Zeca até pensou – mas não falou para ninguém, ele diz – em pedir para que a faixa fosse tirada do repertório do show, por ela não condizer mais com o momento atual dele – ela foi escrita em 2015. “Hoje, essa é uma canção que não diz respeito a mim”, ele explica. “Mas entendi que, em certo momento, a música deixa de ser minha. Ela sai daquele contexto no qual foi criada.”
Zeca, que na adolescência se aventurou pela música eletrônica como DJ, inicialmente inspirado pelos clipes do duo francês Daft Punk da época do disco Discovery, vistos por ele e por Tom (então com uns 5 ou 6 anos), na hora do almoço, não encostava em um instrumento por quase um ano quando o pai sugeriu de criarem uma apresentação com Caetano, Moreno, Zeca e Tom. O mais novo, que integra a banda Dônica, disse que somente aceitaria se Zeca topasse a turnê. Tinha certeza de que o irmão não embarcaria nessa ideia. “Depois de um ano, Zeca aceitou”, lembra Caetano. A partir daí, hoje, Zeca consegue se enxergar como um artista. Até vislumbrar um disco dele, embora ainda não exista data para acontecer.
“Tem um verso de Todo Homem que é a cara do Zeca: ‘Pra mim nunca tá bom’”, brinca Tom. Mas Zeca corrobora com o irmão, sem saber. “Eu tenho um nível de exigência que vai além da minha capacidade”, ele explica, ao contar que busca a opinião de outros para suas músicas com frequência. Na apresentação em Belo Horizonte, a céu aberto, Zeca começou a dedilhar o piano inicial de Todo Homem e foi recebido por uma ovação que só silenciou quando ele atacou as primeiras notas do canto.
Depois do show, procurou a reportagem do Estado, na porta do seu camarim (pai e filhos têm espaços separados ali). “Queria muito falar com você”, ele diz, aflito. Não era uma resposta nova pensada depois. Na verdade, Zeca estava insatisfeito com sua própria performance. “Você ouviu? Entrei errado na nota”, ele explica, ao levar a mão na própria garganta.
Zeca estava desgostoso, mas, ao ouvir que os gritos do público abafaram a voz inicial dele, acalmou-se. “Ele fica assim”, diz Caetano, paciente, enquanto justifica a fragilidade ocasional do gogó do filho com o frio daquela noite (o termômetro marcava 12ºC). Mas a cobrança faz parte da doçura de Zeca, que busca a perfeição. Principalmente porque ele entende que não é dono da verdade absoluta. Como é o caso de Coração Vagabundo, do pai. “Depois de um tempo, ele me disse que tinha mudado de ideia”, conta Caetano. “Perguntei o que mudou e ele me disse: ‘Só estou achando ela mais legal agora’.”
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.