Acho até que o que acontece comigo deve acontecer com todos que gostam de música. Você acorda cantarolando uma canção e passa o dia todo com ela na cabeça. Quando se dá conta, está a assoviá-la ou a cantá-la, nem que seja um pedacinho. Hoje me fez companhia desde as primeiras horas da manhã o maravilhoso samba “Wave”, de Tom Jobim. Como gosto dessa música! Tudo nela sai do lugar comum.
Tom compunha como grandes pintores pintam seus quadros, tornando-os únicos. Assim são as canções do maestro. Ele tinha uma sacada que só um gênio poderia ter. A esposa dele disse num documentário que, muitas vezes, Tom Jobim mal tomava seu café matinal, apontava alguns lápis, pegava sua prancheta com folhas pautadas de música e passava o dia todo na mata de seu sítio em Teresópolis, ou no Jardim Botânico, que era como seu quintal, pois morava ao lado.
Em silêncio, ficava amoitado ouvindo o canto dos passarinhos e anotava na partitura as notas musicais emitidas por eles. Voltava pra casa com muitas músicas prontas, precisava apenas lapidá-las. Sabe-se lá quantas parcerias ele teve com passarinhos.
Tom morria de medo de avião, mas sua obra o obrigou a possuir um apartamento em Nova York. De lá enviava cartas para os amigos no Rio de Janeiro convidando-os para visitá-lo, pois morria de saudades da convivência e da boemia carioca. Um dos destinatários era Dorival Caymmi, autor de “Marina”, “Modinha pra Gabriela” e muitas outras.
Era outro que só de pensar em voar sentia arrepios, mas mesmo assim decidiu passar uma semana com Tom. A esposa ficou, mas baiano é mesmo um sossego. Quando Caymmi caiu na real já fazia seis meses que estava no apê do Tom. A esposa lhe mandou um ultimato: “se você não voltar em uma semana, não precisa voltar mais”. Quase deu um piripaque nele, que na semana seguinte vencia o medo de avião desembarcando no Galeão.
Tom tinha umas tiradas que não esqueço. Ele dizia: “Nova York é bom, mas é ruim, Rio de Janeiro é ruim, mas é bom”. Não sei se essa frase é dele. Sempre que voltava pro Rio, seu coração batia descompassado e penso que do alto aquele cenário tão bonito tenha lhe inspirado a compor “Samba do avião”.
Na letra, ele descreve o que sente ao sobrevoar a Cidade Maravilhosa, com nosso Cristo Redentor de braços abertos sobre a Guanabara. Letra e música são tão perfeitas que me faz sentir como se estivesse vivendo tudo aquilo, até o momento em que o pássaro de aço toca o chão, onde ele escreve “E vamos nós… aaaaaaterrar”. Quando canto essa música, sinto como se estivesse no voo, tocando o chão.
Certa vez, Chico Buarque estava em sua casa para uma visita e quando ia saindo, Tom disse: “Ô Chiquinho (era assim que o maestro o tratava), ouça essa música que compus pra completar meu LP, falta-me fazer a letra”. Quando o maestro tocou as primeiras notas no piano, Chico cantarolou “Vou te contar”… Tom gostou e Chico falou: Grave uma fita K7 com a melodia que vou fazer a letra”. Antes de Chico sair, Tom disse que tinha pressa pois só faltava essa música pra fechar o disco.
Os dias passavam e Chico não dava retorno e o maestro, preocupado com a gravadora, cobrava seu parceiro, que lhe pedia pra segurar a onda, até que a paciência de Tom se esgotou, ele passou a mão no telefone e tomou drástica decisão. “Ô, Chico, não dá mais pra esperar, você fica aí nesse ‘vou te contar’ e não sai disso. Olha, pode deixar que eu acabo a letra”. E acabou: “Vou te contar, os olhos já não podem ver, coisas que só o coração pode entender…” Show de bola.
Ainda sobre medo de avião, Tom sempre repetia essa frase quando voava: “O defeito é aqui em cima, mas a oficina é lá embaixo” (heheheheh).
Abreijos amigos, sexta conto mais.