Moradora da comunidade Tupã, de mais de 100 famílias na cidade de Xinguara (PA), a trabalhadora rural Kennya Silva, hoje com 43 anos, comemorou muito quando, em 2008, a energia elétrica chegou à casa dela. “Era uma conquista imensurável ter luz em casa”. Uma das primeiras providências foi satisfazer um sonho antigo da família: alugar um filme no centro de Xinguara (a 15 quilômetros de distância) para assistir em casa. Seria o dia de um “luxo” que todos estavam esperando.
– Mas não vou poder alugar pra você – disse a dona da locadora para espanto de Kennya.
– Você mora em área rural. Se você não voltar, como vou te encontrar?
E o endereço não foi aceito. Revoltada, saiu pela rua e chorou. “Foi tão grande a minha indignação que andei por um tempo pensando naquilo, muito triste. Eu pensei que essa mulher que me negou o aluguel do filme só se alimenta porque eu trabalho na roça. As pessoas na cidade comem porque a gente planta”.
Era muito tristeza e revolta. O sentimento a levou até o caderno em que se habituou a escrever poesias, o que faz desde a adolescência.
Kennya resolveu retomar um texto antigo que havia começado a escrever havia oito anos. “Uma Maria Quarqué”. Ela não queria mais assistir ao filme. Queria mesmo era escrever. Traduzir o que aquele instante significava. Mais do que isso: aquele desabafo não poderia ficar somente no caderno. Resolveu mandar para o programa Viva Maria, da Rádio Nacional da Amazônia. “Eu mandei a poesia. Para minha surpresa, a Mara Régia (jornalista e apresentadora do Viva Maria) não só leu a poesia, como também declamou com o fundo musical de Maria, Maria (de autoria de Milton Nascimento).”
O programa Viva Maria é parte da vida de Kennya Silva. Desde a infância, inclusive, ela acompanhava, com a família, a programação da Rádio Nacional da Amazônia. O radinho de pilha era colocado em posições estratégicas para que a voz dos apresentadores nunca falhassem.
“Seria um sonho que a Mara Régia lesse minha poesia, Mas ela fez mais do que ler”.
Ao receber a carta, a produção do programa procurou Kennya para uma entrevista. Os pedidos de entrevistas chegavam também pelo apelo das ouvintes. Todos queriam conhecer quem havia criado aqueles versos.
Eu sô uma Maria quarqué.
Uma dessas muié, qui vivi na roça,
qui viaja di carroça, di cavalo ou a pé.Eu sô uma Maria quarqué.
Dessas que acorda cedin, faz o bolo i o café, cuida da casa du quintá,
dus bichin, dos animá, qui sustenta o brasí di pé.Eu sô uma Maria quarqué
qui tira o leite da vaquinha, cuida das prantas i das galinhas, sô maria muié de fé. Sô maria forte, sô du su ou sô do norti num importa o lugar, in quarqué parti du praneta ixisti uma Maria cuma eu, qui luta cum fé i coragi na lida qui Deus lhe deu.Eu Sô uma Maria quarqué
Num sei falar ingrêz, num intendo di moda, uso xita i xadrez,
Sô diferente di ocês, mas isso num mi incomoda.Eu sô uma Maria quarqué
di vêz inguanto vô na cidade, inté cumpriendo seu valô.
mais é aqui no mato qui tenho felicidade, sô bonita do meu jeito também tenho vaidade.Eu sô uma Maria quarqué
Sô da roça sim sinhô, sô caipira cum orguio, mas trabaio cum amor.Eu sô uma Maria quarqué.
qui só usei esse papé, pra chamar sua atenção pra fazer ocê oiá, cum o zói du coração pras tantas Marias quaisquer, que vivem de realidade, que retratam o amor à vida e a fé, que só desejam ser respeitadas ao longo dessa jornada no seu ranchinho de sapé.
Escute aqui a poesia na íntegra
Inspiração feminina
A Maria Quarqué, de Kennya, fez sucesso. “A partir desse momento, foi um divisor de águas na minha vida. Tomou um sentido que eu não imaginava. E pensar que, na época, eu tinha parado na quinta série do ensino fundamental”.
A poesia de Kennya inspirou outras mulheres da região, como uma senhora que, ao ouvir a poesia, decidiu percorrer 18 km de bicicleta para estudar. “Quando eu escutei aquilo, foi um susto. Como eu estou inspirando outras pessoas e eu mesma não voltei? Então, voltei pra escola e escrevi pra Mara Régia de novo”.
A nova carta de Kennya repetiu o sucesso e mais de dez pessoas escreveram para a produção do Viva Maria, garantindo que voltariam para a escola.
Novos começos
Era só o começo de uma reviravolta. Fez supletivo e, depois, ingressou na faculdade. O círculo virtuoso cresceu. Kennya passou a ser premiada em concursos de poesia.
“A história tem a marca do Viva Maria. Ganhei o prêmio Mulheres Rurais, Mulheres com Direitos. Não imaginava que a minha história fosse tão importante para outras pessoas. Hoje eu represento as mulheres trabalhadoras rurais no Brasil em conferências internacionais da América Latina”.
Ingressou na faculdade de letras, virou tutora de oficina de poesia. Após a primeira experiência universitária, resolveu fazer o curso de filosofia. Está prestes a concluir também. Ela não para de escrever. Sonha publicar o primeiro livro. São mais de 500 poesias que tratam sobre a vida das mulheres, o trabalho no campo e as próprias experiências. Os textos são escritos primeiro nos cadernos e depois digitados no computador de casa.
Hoje, Kennya, professora da rede municipal, está cedida para a Casa de Cultura de Xinguara. Como trabalhadora rural, cultiva frutas como graviola, cupuaçu, acerola e tamarindo. A família congela e vende a polpa de fruta.
A jornalista e apresentadora Mara Régia chegou a ir até a casa de Kennya de surpresa. Foi emocionante para a poetiza. Junto da profissional do programa Viva Maria, estava a ouvinte e trabalhadora rural Alzira Soares, de 69 anos de idade, que vive na cidade de Tucumã, há 36 anos. Ela disse que não havia nem tirado documentos não fosse o programa Viva Maria, entusiasmada com a história da Maria Quarqué.
A vida na roça para Alzira é desde que ela se entende por gente. “Quando encontrei a Mara, me emocionei muito. Queria contar para ela que conheci mais sobre os meus documentos, mas também assuntos da saúde da mulher. Há 30 anos, eu não sabia o que eram [os exames] papanicolau e mamografia. Além disso, passou a frequentar a escola com 42 anos de idade. Montava no cavalo e ia por 6 quilômetros”.
São essas inspirações que fazem Kennya escrever. “Quando me perguntam, por que eu, uma trabalhadora rural, faço poesia… eu respondo que isso não me dá dinheiro, mas me dá emoções que o dinheiro não compra.”
Edição: Alessandra Esteves