O dia 12 de setembro foi consagrado como o Dia de Criança, razão pela qual se tem afirmado que, se possível,o lado positivo da pandemia foi reaproximar os adultos com as crianças.
Muito tenho aprendido com as crianças, as quais me ensinaram que esta proposição pode ser falsa. A verdade reside na afirmação segundo qual foram as crianças que tomaram a iniciativa de reaproximar-se com os adultos. Há certa certeza nisto. Como os adultos foram enxotados para dentro das casas pelo “covid” então redescobriram que ali era o espaço de convivência infantil da qual receberam grandes e inesquecíveis lições de como viver bem.
Aqueles que nasceram pela metade do século XX, de famílias pródigas de filhos, sentiram na alma o retorno do ambiente então passado, marcado pelo perfume dos jambeiros e dos manés magros. Pudera, naqueles antigos tempos até depois do sol dormir, as casas eram tomadas pelo perfume das “damas da noite”.
As seis, doze e dezoito horas a sereia das cervejarias avisavam que era hora de acordar, de almoçar e de jantar. No meio da tarde, outro perfume marcava o tempo. Navegava pelo ar o odor do Café Biagini que, quase com certeza, era acompanhado pelo pão com manteiga Pesca. As crianças faziam a lição de casa enquanto os pais ouviam pelo rádio a novela da PRA-7, rádio clube de Ribeirão Preto.
Muitas daquelas horas estão sendo reproduzidas neste momento de extraordinária dor que são até atenuadas pela companhia das crianças que capturaram as saudades do tempo antigo.
A Valentina e a sua irmã Helena são duas pequenas fadas que ilustram os dias de hoje. Volta e meia vão passear com a sua cachorra, conhecida como Biga, batendo à porta da casa dos vizinhos. Claro, com a Biga.
Há poucos dias a Valentina, com sete anos, bateu nas nossas portas para mostrar o filhote de passarinho que a Biga havia encontrado. Mas, qual é o nome deste passarinho? Ele se chama João Pedro, dou a ele, duas vezes por dia, milho macetado coberto por manteiga derretida, respondeu.
Valentina e Helena cuidam de todos nós e ainda têm tempo de brincar com a Biga e alimentar o João Pedro. Isto tudo no espaço que encontram entre o dever de ir à escola, fazer a lição de casa e abençoar aqueles que por elas são encontradas. A Valentina já declarou secretamente que quando crescer vai ser veterinária, pois quer ser médica para cuidar dos animais, prevendo o seu futuro que, com certeza, estará preenchido de plenas esperanças.
O grande escritor francês Valentin Louis Georges Eugene Marcel Proust escreveu uma extensa e aplaudida obra que lhe veio da memória logo após tomar uma xícara de chá de tília que o levou a navegar pelo passado em busca do tempo perdido.
Os vizinhos de Valentina não precisam tomar uma xícara de chá para voltar ao passado que, consabidamente, não está perdido, ao contrário, não se perdeu, mesmo agora documentado pelo pranto devido às seiscentas mil mortes do covid. Valentina tem o condão de transformar o hipotético passado perdido de seus vizinhos em firmes passos dados em busca de seus futuros.
Mas será possível atenuar a dor com o sorriso decidido da criança? Penso que sim por isso que a dor angustiante da pandemia vai se esvaindo da memória com o olhar da Valentina, sempre acompanhada pela agitada Biga e pela aparente calma do João Pedro.
O Dia da Criança, neste doloroso ano de mil novecentos e vinte um, após ter sido definido pelo olhar da Valentina, caminhará pela eternidade como padrão da convivência humana.