Tribuna Ribeirão
Cultura

Uma tomada consciente para o cinema

Por Guilherme Sobota

Quando Charlize Theron – protagonista e uma das produtoras executivas do novo filme The Old Guard, na Netflix, no dia 10 de julho – planejou lançar o longa, ela também não sabia que os EUA estariam vivendo uma convulsão social (não inédita, é verdade) por conta de violência policial e racismo, além, claro, de uma pandemia gravíssima. Mas ela e a diretora Gina Prince-Bythewood escolheram a estrela em ascensão Kiki Layne para um dos papéis principais antecipando uma discussão corrente em Hollywood: a representação de forças policiais e do exército.

“É importante ver que as Forças Armadas não são compostas apenas de homens brancos”, diz Kiki, em uma entrevista coletiva virtual com jornalistas da América Latina. “Os filmes grandes que se focaram nisso tendem a se apoiar nessa narrativa. A verdadeira questão agora, porém, é que os protestos estão se expandindo no sentido de responsabilizar todo tipo de indústria sobre como pessoas negras são tratadas e representadas. Isso também inclui a indústria do cinema. O mundo é realmente diverso, pessoas diferentes fazem parte de narrativas das quais historicamente foram deixadas de fora, inclusive no cinema. Sou grata de ser parte do grupo que está expandindo essa barreira.”

Para ela, é importante que atores e produtores estejam agora, mais do que nunca, cientes da natureza das histórias que querem contar. “Como mulher negra, os tipos de histórias e papéis a que tivemos acesso sempre foram muito limitados, e, nos últimos anos, a importância da representatividade se tornou pública, porque de fato faz diferença como as pessoas se veem retratadas. Estou muito consciente desse impacto, e o considero uma oportunidade para a arte do cinema também servir a um propósito maior.”

No início do filme, Nile (Layne) é uma fuzileira naval do exército americano na guerra do Afeganistão que sobrevive sem explicação a uma ferida mortal perpetrada por um homem que mantém mulheres como reféns. Essa habilidade extraordinária a conecta com um grupo de imortais que vagam pelos séculos tentando encontrar sentido para sua própria imortalidade, o dilema filosófico central do filme. A equipe é liderada por Andy (Charlize Theron), cujos questionamentos sobre a validade de seu talento extraordinário permanecem sem respostas. A presença de Nile, personagem de bondade e senso de ética rígidos, porém, empurra Andy para uma possível nova perspectiva de vida.

A diretora Gina Prince-Bythewood vem do cinema independente – seu primeiro filme, Love & Basketball (2000), estreou no Festival de Cinema de Sundance e foi mais tarde premiado. The Old Guard é a sua primeira investida no “cinemão” americano. “Meu último filme tinha sido um de US$ 7 milhões, e esse, bem, é de muito mais”, diz a diretora. “Mas o que é interessante é que um amigo (Rian Johnson, do último ‘Star Wars’) me disse que não importa o tamanho de um orçamento, mas é preciso contar uma boa história antes de tudo.” Claro que os efeitos e “brinquedos”, como ela chama as vantagens do grande orçamento, ajudaram muito: o filme é recheado de cenas de luta, tiroteios e explosões.

“A grande questão foi a pressão para realizar esse filme”, disse a diretora. “Em primeiro lugar, eu não queria desapontar Greg Rucka e Leandro Fernández (autores da HQ em que o filme é baseado), mas também a audiência. A graphic novel deles foi a minha bíblia na produção, e a usamos inclusive no set.”

Charlize Theron também encontrou valor na leitura. “O material fonte é muito rico, desde o começo percebi que tinha ali muito potencial. Fisicamente, ela não parece comigo, mas, além disso, sua essência é verdadeira. Quisemos nos manter próximas do que o Greg Rucka tocou e o que nos pareceu muito relevante e irreverente.”

Rucka é um roteirista de quadrinhos aclamado nos EUA, com mais de um prêmio Eisner no currículo, e, entre seus trabalhos mais conhecidos, está uma reinvenção da personagem Mulher-Gato para a DC Comics. A terceira parte da trilogia The Old Guard, feita em parceria com o ilustrador argentino Leandro Fernández, sai em 2021.

“Andy, de várias maneiras, carrega uma fardo de dor e luto”, explica Rucka, sobre a personagem principal. “Não há ninguém que possa entender pelo que ela passou, e ela também está cansada. Mas acredito que a gente mede o poder dos heróis pelo que eles têm de enfrentar e, nesse caso, acho que o que ela precisa enfrentar é ela mesma.”

No filme, a personagem de Charlize tem nos amigos imortais Booker (Matthias Schoenaerts), Joe (Marwan Kenzari) e Nicky (Luca Marinelli) a única espécie de família em muito tempo – ela é a mais velha, e seus entes queridos ficaram num passado distante. Já Nile, tomada pela descoberta de sua nova habilidade, precisa encarar o fato de que sua família não poderá acompanhá-la na jornada.

Rucka – também roteirista no filme, ao lado da diretora – conta que Prince-Bythewood apontou que a personagem Nile precisaria de mais profundidade do que no livro, e que ele concordou imediatamente. “A visão dela foi o que trouxe esse filme à vida”, diz o escritor. “As experiências de vida dela são muito diferentes da minha, mas acho que isso permitiu a ela uma conexão íntima com as personagens muito forte, talvez mais forte do que aquela que um diretor homem poderia alcançar.”

Apesar de ter sido filmado apenas no Marrocos e no Reino Unido, o filme passa por diversos países e épocas, o que lhe empresta um sentido de globalização e intercâmbio cultural, assuntos temidos ou evitados por diversos líderes políticos globais no século 21, fortemente contrários à imigração, por exemplo. Ao mesmo tempo, a história também traz reflexões sinceras sobre mortalidade e luto – um bom pacote, afinal.

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.

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