Tribuna Ribeirão
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Uma tia querida

Nos dias chuvosos que tivemos, aproveitei para rever o arquivo da família. Foi um mergulho gostoso no passado, nas lembranças que calaram fundo na minha formação e um reviver de emoções. Dediquei bom tempo para os tios e tias, que foram como uma extensão de nos­sos pais, proporcionaram experiências valiosas e deixaram sua marca em nossa personalidade.

Minha tia Francina Guião de Mendonça nasceu em Cajuru e seu nome era uma homenagem de meu avô João Rodrigues Guião à Revo­lução Francesa, que tanto amava e propagava, pois ela nasceu no dia da Queda da Bastilha, 14 de julho. Meu avô contava a dificuldade que teve para convencer o padre que a batizou, pois Francina era um nome “pagão” (não existia santa com este nome), e que não ficava bem ser usado por uma família cristã. Só depois de muita insistência, conse­guiu batizá-la com o nome desejado.

Na família do meu avô havia cinco homens e somente duas mu­lheres, sendo que a última, a caçula da família, nasceu bem depois. Francina teve excelente educação, não só em Ribeirão Preto, como em São Paulo, onde frequentou ótimas escolas.

Desde cedo, manifestou sua veia artística, tocando piano e harmônica, artes que estudou por longo tempo. Gostava de fazer recitais domésticos em todos encontros familiares, com músicas compostas por meu avô e por ela.

Casou-se ainda jovem com Germano Waldemar de Mendonça, de família de grandes fazendeiros de Araraquara, onde passou a residir. Por muito tempo, tentou engravidar, sem sucesso. Com a morte dos sogros, passou a morar no palacete da família, em frente à Catedral daquela cida­de e cuidava de uma cunhada, que tinha severo retardo mental. No leito de morte, a sogra disse que Francina seria a única que poderia se dedicar à cunhada e pediu que dela cuidasse o tempo necessário.

Tio Waldemar, como o chamávamos, fazia todas as vontades da esposa. Logo após o casamento, presenteou-a com a Gercina, um Ford 29, assim denominado pela junção dos dois nomes: GERmano com FranCINA. Tinha várias fazendas, notadamente a Monte Verde, em Santa Lúcia, perto de Rincão, com um casarão imponente e um terrei­ro de café onde realizava as festas juninas.

Ali passávamos as férias, brincando no terreiro, nas canaletas artificiais de água destinada à lavagem do café e curtíamos a procissão noturna junina, ao som das cantorias dos colonos.
O sobrado, como chamávamos a casa da cidade, era um verdadeiro palacete, com grande varanda cheia de colunas, onde minha tia plantava suas primaveras. Os móveis da casa eram todos importados da Áustria e os pratos decorados com o brasão dos Mendonça. Um grande carrilhão alemão ocu­pava uma das paredes da sala de jantar e seu som atingia a casa toda.

Tia Francina era exímia doceira, perpetrando bolos, biscoitos, doces em calda, habilidade que herdou de minha avó paterna, sua mãe. O de maior sucesso era um doce de laranja, antológico. Descascava aquelas laranjas amargas, que eram colocadas num saco de linho, sob a água da torneira do tanque, por três dias seguidos. Depois, numa grande panela cheia de açúcar, deixava ferver e ferver, produzindo uma obra de arte. Quando estava bem velhinha, disse ao Rodolpho, grande chef, meu primo e seu sobrinho, que a receita não poderia desaparecer e, depois de algumas aulas, ele conseguiu reproduzir o doce, com o qual nos encanta até hoje.

Não só fazia os doces, como os apreciou até o final da vida, depois de 102 anos bem vividos. Uma tarde, em Ribeirão, convidei-a para tomar sor­vete. Ela foi alegre e, quando perguntada quantas bolas da iguaria queria, respondeu em alto e em bom som: seis, espantando a mim e ao atendente.
Magrinha, lépida, independente, mesmo viúva manteve sua vida cheia de visitas a parentes e amigos, dedicando-se às atividades sociais. Vinha sozinha de ônibus de Araraquara, descia na Rodoviária e ia me visitar na Santa Emília, então na rua Saldanha Marinho.

Guardo carinhosa lembrança dessa tia querida, que todos chamavam de Tia Yayá e somente eu de Tia Francina.

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