Tribuna Ribeirão
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Uma pharmácia de sonhos

Edwaldo Arantes *
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Eu menino entre calças curtas, iniciei minhas atividades laborais na Pharmacia Sant’anna de propriedade de um tio muito amado, o farmacêutico, José Ananias Alves Ferreira Júnior.

Tio Zezé, como carinhosamente o chamávamos, foi da primeira turma, do Instituto e Escola de Farmácia de Ribeirão Preto, hoje, Universidade de São Paulo, Campus USP/RP, que funcionava à época em um casarão nas esquinas das Ruas Tibiriça com Florêncio de Abreu, foi também anos depois sede da Secretaria Municipal da Fazenda, depois instalou-se uma Base da Polícia Militar.

Nasceu em 1912, formou-se muito cedo, com louvor, aos vinte e dois anos de idade, retornando a sua terra natal, São Sebastião do Paraíso, nas minhas Minas Gerais.

Naquela época não havia o transporte rodoviário, uma vez por ano, retornava ao seio familiar para gozar suas férias, nos bailes, quermesses e folguedos.

A viagem era realizada pela “Maria Fumaça” da Cia Mogyana de Estrada de Ferro, apesar dos cerca de cem quilômetros que separavam Ribeirão Preto de lá, o percurso durava umas doze horas.

Tenho guardado nas minhas memórias, lembranças que cultivo com saudade, gratificação e júbilo, com um lindo aprendizado e convivência, dando graças pelo tempo passado ao seu lado.

Nosso tio foi possuidor de uma mente brilhante e talentosa, de uma sapiência sem fim. Era, na realidade, o médico da cidade, pois todos buscavam o seu socorro, ricos, pobres e remediados, como se dizia naqueles transcursos.

Aos sábados, pela Rua Placidino Brigagão, desenvolvia-se um cortejo composto por carroças, charretes, montarias, que perfilavam em frente a pharmácia, buscando a restauração da saúde.

Em absoluto, não se tratava de curandeirismos, crendices ou charlatanismos, era a ciência explícita e pura, no seu mais alto grau do conhecimento, com seus medicamentos produzidos pela manipulação de diversos produtos da farmacopéia da época, que brotavam de suas mãos cérebro e seus seguros conhecimentos científicos, misturando e dosando elementos, transformando-os em eficazes remédios ou em harmoniosas fragrâncias e seus perfumes.

Havia um ritual que ficou na minha memória onde a ignorância infantil não conseguia entender.

Ele examinava os pacientes, com a calma e o silêncio das canoas indígenas, deslizando suaves pelas águas, nas noites escuras.

Terminada a consulta, sentava-se em uma poltrona eterna, de cores verdes, ficava absorto em seus pensamentos, com o rosto mergulhado protegido e envolto pelas duas mãos.

Levantava-se, dirigia-se a estrutura que sustentava três antigas bobinas de embrulho, cortava um pedaço de papel, desenhando letras e escrevendo em uma linguagem totalmente desconhecida, de símbolos e códigos, adentrava o laboratório como em um conto de fadas, tecidas pelas mãos invisíveis dos deuses e duendes, a solução brotava de sua mente iluminada e sábia.

O laboratório era uma verdadeira catedral, no lugar dos santos, vidros, sais, produtos, graus, cálices, pipetas, dosadores, equipamentos como centrífugas, estufas higienizadoras, culminando com uma balança de precisão, fechada com vidro, para evitar que fatores externos alterassem a sua exatidão.

Em uma máquina de escrever “Olivetti” preta, teclava a posologia, que eu untava com uma goma arábica e colava aos vidros, aos sábados este ritual transcorria das sete até lá pelas vinte e duas horas.

Nos devaneios da minha meninice tudo aquilo não era apenas o labor, quando empacotava os medicamentos ou fragrâncias, mas sim, um local onde era cercado de luzes multicores, de cheiros inebriantes, de mistérios que eu procurava imaginar, projetando, bruxas, caldeirões e poções.

Eu o via como um mago, um deus da mitologia, ali passava meus dias e vivia imaginando ser o nosso “Olimpo” ou nossa “Tenda dos Milagres”.

Um ser surgido de alguma divindade, distribuindo cápsulas, líquidos, pomadas e bondades, retirando todas as dores, silenciando as moléstias e padecimentos, principalmente os impossíveis.

Ou, talvez, fosse o meu super-herói preferido, que a molecada torcia e aplaudia maravilhada e feliz, quando salvava a princesa ou vencia os dragões, libertando os povos, nas deliciosas e saudosas tardes de domingo, com os olhos arregalados, em frente a tela, nas matinês do “Cine Recreio”.

* Agente cultural

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