“O’ Deus da vida! Iluminai-me e fazei de mim um mensageiro de misericórdia e esperança”
Tenho certeza que desse fragmento que tirei da “Oração do Médico” possa resumir o que foi a vida do professor doutor João Carneiro que desde menino em Ituverava tive a oportunidade de admirá-la.
Lembro-me bem, que quando criança ia com minha mãe à sapataria do Sr. José Carneiro, aquele artesão que não só consertava os sapatos, mas também os fazia como novos. Junto deles, um dos filhos, o Elias (“Nenê”) que trabalhava incessantemente e o outro mais novo – João. Não longe dali seu tio, também Elias, o melhor fotógrafo de toda a região, sempre solicito.
“Nenê” também era professor substituto na escola Josino de Andrade, e foi um dos meus primeiros mestres no jardim de infância. Eu rezava para que a professora titular faltasse para ouvir as estórias daquele sapateiro/professor com suas lições de vida.
Seus irmãos, Milésio e Aziz, exímios dentistas com quem tive oportunidade de me tratar. Suas irmãs, costureiras de renome na região, Sara na máquina de costura e Cida com suas mãos habilidosas fazendo lindos bordados, confeccionando os melhores vestidos de festas e de noivas (inclusive o da minha esposa).
Minha mãe (Dona Silda) sempre me falava desta bonita família, simples, humilde e bastante caridosa, com quem tínhamos ótima amizade.
Um dia minha mãe chega em casa toda radiante, alegre, com uma grande bolsa. Tira dentro dela um emaranhado de papéis com fotos coloridas – era a Tese de Mestrado/Doutorado de um de seus mais brilhantes ex-alunos – o João. Ela toda orgulhosa disse-me “Filho, quero que um dia você possa se espelhar neste médico que toda família sempre sonhou. Mas se o sonho é a medicina, o preço é a prática, compromisso, dedicação e amor ao próximo”.
O tempo passou. Eu estava agora fazendo pós-graduação, tendo aulas com o João (era como eu o chamava intimamente, longe das aulas e dos pacientes), aprendendo e ouvindo suas experiências, lembrava-me das aulas do seu irmão Elias (o “Nenê”) no pré-primário. Histórias de vida, amor, caridade, sempre lembrando da frase de Epiteto – “O Homem sábio é aquele que não se entristece com as coisas que não tem, mas alegra-se com as que tem.”
Naquela época eu dava plantões de finais de semana na Santa Casa de Ituverava junto com meus grandes amigos, Dr. Alcidinho (In memoriam) e Valtuires. Muita coisa aprendi com a prática com Professor Carneiro. Além do amor ao paciente, também receitas médicas e uma delas que ficou na minha memória era para a dor de garganta – embrocação (pincelamento da garganta) com azul de metileno e colubiazol. Eu falava: “Vai lá no Ariovaldo (farmacêutico) para fazer o pincelamento.” E dava certo, melhor que qualquer antibiótico.
Recordo também, que uma noite em Ribeirão Preto, eu residente do segundo ano de Radiologia no famoso bar do Conti, localizado na Avenida Nove de Julho, estávamos tomando uma cerveja com o Aloisio, Zé Olavo (residentes e hoje Radiologistas renomados), e o Sócrates (sim, o famoso jogador ainda estudante), quando se aproximou o Edmundo (Dr. Mársico), falando que já estava terminando a Residência e que não sabia para qual cidade iria para trabalhar.
Eu o convidei para vir para Ituverava, onde minha família tinha muitas amizades e eu já trabalhava como plantonista. Ele falou: “Ituverava??!!”. Sim, Edmundo a Terra do Chiconeli da Urologia, do Takashi da Vascular, do Miguel Moises da Nefrologia e antes que eu terminasse o Mársico falou: e do Grande Professor Doutor João Carneiro. Sim, Dr. João também elevou o nome da nossa querida cidade.
Nunca vou me esquecer do meu primeiro plantão de radiologia na Unidade de Emergência (HC Cidade). Era a minha primeira semana na radiologia e naquela sexta-feira o técnico de Raio-X da noite não pode comparecer, pois sua mãe acabara de falecer. Os colegas residentes tinham ido à São Paulo em um congresso.
Eu estava sozinho à noite para fazer os exames e interpreta-los (à U.E não tinha o movimento de hoje). Já estava no aposento do segundo andar, dormindo, por volta da meia-noite quando toca o telefone – “temos um Raio-X de tórax do pessoal da cirurgia urgente!” Logo eu que nem sabia ligar o aparelho. E agora??
Os residentes da cirurgia eram chatos (sempre foram rsrs). Fui para o corredor do Raio-X e vejo um Senhor cambaleante que mal conseguia ficar em pé. Atrás dele, amparando-o, um anjo de branco, alto, esguio, com o semblante divino. Era o professor doutor João Carneiro. Quando me viu sorriu e disse: “Olá José, que bom vê-lo.” Respondi apavorado: “Oi João, não sei nada de Raio-X e não sei como vamos fazer, estou muito nervoso.” “Fique tranquilo José”, disse o Dr. João me acalmando.
Então ele fez o Raio X, revelou (não tinha processadora na época) e interpretou, me ensinando todos os passos. Nunca vi uma radiografia tão bem feita! Ainda me falou: “Se você quiser ser um bom médico, antes de ser um especialista, tem que saber um pouco de todas as especialidades e preste atenção José, a Clínica necessita muito da imagem, mas a imagem sem Clínica é alejada.”
E cada dia mais o admirava… Sua Fé também era grande. Como eu ficava feliz em vê-lo nas missas de Natal e passagem de ano na Igreja Católica São Pedro e São Paulo em Ituverava. Saia do meu lugar e ia cumprimentá-lo para o abraço de Paz.
João faleceu.
João poderia ter feito fortuna na Medicina devido à sua competência. Mas preferiu a carreira Universitária da qual nunca se arrependeu, ensinando os alunos e ajudando os mais necessitados. Lembro-me bem, ele chegando ao Hospital das Clínicas com seu velho Fusca, simples, cumprimentando a todos e agasalhando seus pacientes na Enfermaria, nunca visando bens materiais. O médico dos Homens e de Almas se foi, mas deixou suas sementes aqui na Terra que frutificaram.
Penso que doutor João possa ter se espelhado no apóstolo Paulo, que disse: “Posso tudo, mas nem tudo me convém”.