Edwaldo Arantes *
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Nesta noite infindável em uma ausência total de sons, quando nenhuma gota pinga de uma torneira mal fechada, o assoalho não range, a porta não bate impulsionada pelo vento da madrugada, o relógio na parede sem corda, até o galo esqueceu o canto. Ponho-me a pensar que o silêncio sepulcral também assusta, mas desviei meus pensamentos e vagueio em imagens distantes misturando-se em diferentes tempos, momentos e lugares. Devaneios, sonhos, fantasias, imaginações, quimeras, ficções, realidades e utopias.
Caminho em calças curtas, corto a praça, adentro o armazém do senhor José Neves, português que arrasta os chinelos, ranzinza, porém, afável. A Venda, que se chamava “Secos e Molhados” com seus barris de madeira que acondicionam azeitonas, bacalhaus, arenques, sardinhas, lambaris, carnes secas ao sal e azeites.
Arroz, feijão, milho, amendoins, farinha e açúcar, ficavam em enormes sacos de estopa, tudo vendido a granel, uma caneca com alça unida de solda, em uma antiga lata de “óleo saboroso”, que representava a exata medida do litro e do quilo, colocados sobre o papel jornal no prato da velha Filizola vermelha.
Peço um naco de bacalhau, que ele rasga com as mãos, naquela época quando não tinha nada para o fogão, pasmem, o alimento mais barato era o “Rei dos Mares”, refogado com repolho e batatas, servido com arroz branquinho e soltinho. Fazíamos pequenas despesas “só para o gasto”, não existia supermercado e muito menos cartões de débito ou crédito.
Portamos um pequeno caderno de cor amarela onde eram anotadas as compras, o sistema de crediário mais simples, honesto e perfeito que podia existir, não causava discussão, polêmica ou celeuma. O dono da Venda sabia de cor o dia dos vencimentos de todos, era só passar a régua, somar e começar um novo mês na caderneta surrada.
Era na realidade o “fio de barba”, a palavra empenhada, sem quaisquer conferências ou dúvidas, era a pura confiança.
Assim se procedia com o padeiro, leiteiro, verdureiro, até o barbeiro e a farmácia.
O leite entregue pela carroça em galões altos com torneiras, o burrico sabia e estacionava, o leiteiro avisava com uma corneta nas mãos, que não era soprada e sim apertada diversas vezes com as mãos entoando um som grave.
Nos dias frios dos rigorosos invernos sempre existia uma sopa no jantar, mandioquinha, batata, legumes com pequenos cubos de carne e vez ou outra, canja.
Ouvíamos rádio os quatro, sempre na Tupi do Rio de Janeiro e seu programa “Patrulha da Cidade”.
Os três, cambaleando de sono:
– Sua benção mãe. Boa noite! Durma com Deus.
– Rezem e durmam com os Anjos meus queridos.
Pela manhã, ainda escuro, mamãe batia gemadas com leite fervendo e um pedaço de queijo quente. Íamos para a escola, os quatro, “batendo pernas e os queixos”, só os abastados possuíam automóveis, imagine então, transporte público.
Alguns colegas, que residiam na zona rural, chegavam em charretes e carroças em tremenda algazarra.
Nossa mãe era a professora Maricada, eu no Grupo Escolar, Ewaldo no Gymnasio do Estado e Noel no Pré-Primário.
Na hora do recreio, a merenda, cada um com seu prato de metal e colher, sopas de fubá se revezavam, doce e salgada e um pedaço de pão.
Aos sábados mamãe sempre pedia: Vão até ao Posto e tragam um litro de gasolina, era de graça, usada para misturar na cera vermelha da “Parquetina”, encerando as tábuas que formavam os assoalhos.
Depois o martírio, o escovão que deslizava buscando o brilho capaz de refletir a silhueta A enceradeira surgiu tempos depois, era muito cara, vendida em até sessenta prestações.
Aos domingos, Missa das Nove, Praça, folguedos, amigos e risadas. Ao almoço, macarronada caseira, a pasta ficava pendurada secando ao Sol, molho feito com tomates maduros e frescos, uma garrafa do refrigerante “Maça”, milimetricamente dividido em quatro copos americanos. Após o almoço, mamãe colocava nas mãos do mais velho, a quantia exata para a matinê, o dinheiro era muito raro e difícil, nunca aparecia, mas os dias eram felizes e claros de esperanças, não necessitamos dele.
Em um sobressalto balanço a cabeça, dissipando as lembranças, apenas pareço sentir o cheiro do tempo, marcas do passado, que me assaltam aos sessenta e tantos São Pedros na cacunda. Fecho os olhos e penso Drummond:
“É quando, ao despertar, revejo a um canto a noite acumulada de meus dias, e sinto que estou vivo, e que não sonho”.
* Agente cultural