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Cassoulet: Um ‘rei’ maltrapilho nas ruas de Ribeirão Preto

Por Nicola Tornatore / Especial para o Tribuna Ribeirão

Imagine conviver diariamen­te com a elite de seu tempo, ter as mulheres mais lindas à disposi­ção, ser bajulado por toda a im­prensa, comer do bom e do me­lhor, beber o que existe de mais fino e até ser chamado de “rei” pelos jornais, mas, de uma hora para outra, acabar na miséria, passar o resto dos dias perambu­lando a esmo pelas ruas, sentado horas a fio num banco da praça XV de Novembro, olhar perdi­do, provavelmente recordando um passado que não volta mais, a ponto de inspirar a pena de todos… De “rei a mendigo”, sem dinheiro nem para ser enterrado em um caixão.

Foi isso que aconteceu em Ri­beirão Preto, há exatamente 100 anos, com um francês que por duas décadas comandou a noi­te na fase áurea da “Petit Paris” (“Pequena Paris”), como a cidade era chamada em jornais e revistas da Europa. Ele foi o mais famoso empresário da noite do interior na época. Além de trazer para a então “Capital D’Oeste” – assim chamada por estar a oeste da en­tão capital federal, Rio de Janeiro – artistas européias renomadas, encantando toda a cidade, o francês François (que foi abrasi­leirado para Francisco) Cassou­let “importava” também jovens prostitutas francesas e polonesas, chamadas de “polacas”.

As mais jovens e belas nunca se apresentavam como meretri­zes, mas como “cançonetistas”, ainda que a “arte” delas se resu­misse a desfilar seminuas pelos palcos dos cabarés. François Cassoulet nasceu em 1864, na cidadezinha de Farbe, na região dos Altos Pirineus, na França. Na época, a crise econômica na Europa motivava milhares de jovens a tentar a sorte no “novo mundo” e ele decidiu se aventu­rar já com 31 anos – partiu com a amásia Marie, em fins de 1895, e desembarcou em Santos no iní­cio de 1896.

Em São Paulo, conheceu um conterrâneo, frei Germano de Annency, um frade franciscano e astrônomo francês que pretendia viajar até a Franca do Imperador (a vizinha cidade de Franca, a 90 quilômetros de Ribeirão Preto) para “restabelecer a saúde”. Ou­viu o frade falar da pequena loca­lidade movida pelo café, onde o trem havia chegado poucos anos antes, localizada perto de Franca, e decidiu seguir viagem com o novo amigo.

Cassoulet veio, conheceu Ri­beirão Preto e começou a escrever seu nome na história da “Capital D’Oeste”. O francês desembarcou na cidade e se hospedou no Hotel De Martino, de frente para o des­campado que anos mais tarde se transformaria na praça central da cidade. Rapidamente percebeu que aquele promissor povoado, apesar do muito dinheiro em circulação, não tinha nada para a diversão de seus moradores.

Alugou então um terreno bal­dio numa rua central e ergueu no local um tosco barracão, coberto de zinco e com piso de chão ba­tido. Nascia ali, em outubro de 1897, o célebre Eldorado, um misto de café-dançante e bordel que marcou época, dando início a um período que acabaria por render ao município o apelido de “Pequena Paris”.

Apesar de simplório, o bar atraiu muitos fregueses, levando Cassoulet a inovar – contratou em São Paulo uma artista, coisa que nunca ninguém tinha feito, e a dançarina Palácios fez um su­cesso estrondoso, trazendo novos fregueses de toda a região. Estava claro que havia público, dinheiro e muita vontade de se divertir. Só não tinha onde. Pois agora tinha – e ele pretendia oferecer muito mais diversão àquela gente ávida por ter onde gastar seu dinheiro.

Cassoulet mudou a vida noturna de RP

Em poucos anos, François Cassoulet transformou a vida noturna de Ribeirão Preto. Mais do que apenas empresário, ele foi um verdadeiro agitador cultural. Ainda em 1897, o francês abandonou a mulher Marie, trocando-a pela austríaca Fanny Blumenfeldt, uma antiga meretriz que com o pé-de-meia feito na noite abrira um prostíbulo.

Para chamar a atenção dos moradores e garantir a cobertura dos jornais, tinha o costume de recepcionar as artistas vindas de São Paulo na estação ferroviária com banda de música e fogos de artifício. O seu Eldorado foi palco de grupos de cancan, dançarinas seminuas, bailes carnavalescos, orquestras, óperas e peças teatrais.

A ação de Cassoulet não se resumia a contratar artistas – ele fazia qualquer coisa para agitar a vida noturna. Em 1903 Ribeirão Preto viu sua população despencar, enquanto se alastrava uma epidemia de febre amarela – na qual a mulher do francês, a austríaca Fanny, quase morreu. As lojas estavam todas fechadas, e quem tinha recursos levava a família para se hospedar em fazendas. Quem permaneceu na cidade evitava ao máximo sair de casa.

Após meses de prejuízo, com artistas contratadas confinadas em hotéis, gerando despesas e não faturando nada, o francês considerou que a epidemia refluíra, mas os moradores continuavam muito assustados. Como mostrar que o pior já passara e que a vida podia voltar ao normal? Oras, fazendo festa…

Juntou as dançarinas que estavam paradas, contratou uma banda de música e comprou todo o estoque de rojões que havia na cidade. Saiu com os seus artistas em passeata, “acordando” toda a Ribeirão Preto com canções francesas e um foguetório nunca antes visto. Mandou imprimir e distribuiu milhares de folhetos, “comunicando” à população que a epidemia havia acabado e avisando que as casas noturnas reabririam no dia seguinte.

E elas reabriram lotadas. Cassoulet chegou a controlar 90% das casas de entretenimento da cidade. Anexo ao “Casino Antarctica” ele instalou a Rotisserie Sportman, inaugurou os cinemas Bijou Theatre e Rio Branco, arrendou os teatros Carlos Gomes e Polytheama e ainda montou um rinque de patinação. O francês era literalmente incensado pela elite da “Petit Paris”, deslumbrada pela oportunidade de usufruir em sua própria cidade dos prazeres e luxos que até então só encontravam quando cruzavam o Atlântico em viagens que demoravam meses.

Em 9 de outubro de 1907, uma noite especial marcou os dez anos de inauguração do Eldorado (récita 3.193), e a essa altura Cassoulet era chamado de “rei da noite”. Os jornais não se cansavam de enaltecer o empresário que providenciava diversão de qualidade – aí incluídas as prostitutas europeias.

O ponto alto do “rei da noite” ocorreu em 1914, quando foi inaugurado o célebre Casino Antarctica, construído e decorado pela Companhia Cervejaria Antarctica e entregue a administração de Cassoulet. Foi o período da maior luxúria, com noites regadas a champanhe e jovens prostitutas francesas, consumidas pelos fazendeiros entupidos pelo dinheiro do café.

Mas o reinado do francês, que já durava 20 anos, entrou em repentina erosão, assim como a saúde de Cassoulet. Tudo aconteceu muito rápido. Ele adoeceu em 1917, ainda relativamente moço, aos 53 anos. Como era frequente na época, procurou se recuperar em uma estância de águas – foi para Poços de Caldas (MG). A distância de seus negócios se revelou péssima para os estabelecimentos, mal administrados pelos gerentes. Os prejuízos foram se acumulando e a bancarrota se tornou inevitável.

O sucesso de suas casas de entretenimento e a saúde do francês se esvaíram simultaneamente. Os jornais farejaram o desastre que se aproximava e abandonaram o antes incensado “rei da noite”. Aparentemente, o francês sofreu algum tipo de demência precoce. Ao longo de 1918, Francisco Cassoulet desfilou, em público, sua decadência, além de ficar viúvo – morreu Fanny, que nunca se recuperara plenamente da febre amarela contraída em 1903.

Cassoulet chamava a atenção pelas ruas da cidade – era visto maltrapilho, andando a esmo, com barba e cabelo crescidos, roupas mal cuidadas, sentado muitas vezes num banco da praça XV, exatamente aquela que ele conhecera ainda um descampado, quando desembarcara na pequena e empoeirada cidadezinha, 22 anos antes.

As Empresas Teatrais F. Cassoulet foram a falência. Ele, a pessoa física Francisco Cassoulet, também tem a falência decretada, como a lei da época permitia, e jornais publicaram editais para a identificação de credores e bens. Os dois únicos imóveis de sua propriedade foram arrestados em cobranças judiciais de tributos. Na hora da bancarrota, ficou claro que seu trono tinha pés de barro – ele não era dono dos estabelecimentos que comandava, apenas os arrendava ou alugava.

Internado na ala de indigentes de um hospital público, Cassoulet inspirava compaixão, apesar de sua trajetória ter sido criticada pelos mesmos jornais que pouco antes o idolatravam. Em 1918, a mídia da época noticiava a realização de “um espectaculo em beneficio do antigo empresário theatral Francisco Cassoulet, cujo estado de saúde e de pobresa são de molde a inspirar compaixão”.

Se até poucos anos antes os puxa-sacos faziam fila para apertar a mão do francês, passaram a questionar sua trajetória, como fez um jornalista em uma notícia do espetáculo em prol do falido francês: “Por desregrada e pouco edificante que tenha sido a vida do infeliz empresário (…)”.

Pouco depois, em fevereiro de 1919, Francisco Cassoulet morreu, aos 55 anos. No seu certificado de óbito está registrada como causa mortis “amolecimento cerebral”. Morreu indigente. O rei faleceu tão pobre que foi enterrado na Junta Reserva 795 do cemitério municipal. Ou seja, foi sepultado na terra, já que não havia dinheiro nem para um caixão.
O francês que havia comandado a via noturna de Ribeirão Preto por mais de duas décadas, a ponto de ser chamado de “o rei da noite”, morreu na mais absoluta miséria, repudiado por aqueles que o bajularam durante 20 anos.

 

O francês arrendou os teatros Carlos Gomes e Polytheama e ainda montou um rinque de patinaçãoCassoulet era literalmente incensado pela elite da “Petit Paris”Francisco Cassoulet promovia no Teatro Carlos Gomes conferências, reuniões, comemorações cívicas, cinematógrafos e espetáculos variadosAnexo ao “Casino Antarctica” ele instalou a Rotisserie Sportman, na esquina das ruas Américo Brasiliense e Amador Bueno, onde hoje fica a agência do Banco Santander

Fotos: Reprodução

 

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