Por Julio Maria
MV Bill, ou Alex Pereira Barbosa, é um dos mais importantes quadros do rap desde o final dos anos 1990, quando surgiu com o álbum Traficando Informação, celebrado por ter um dos discursos mais impetuosos e coerentes surgidos na cena. Filho de pai bombeiro, Mano Juca, e mãe dona de casa, Dona Cristina, ele passou a ser chamado Bill ainda criança e, mais tarde, “mensageiro da verdade” por senhoras da igreja evangélica local. Cidade de Deus é sua casa, tanto que teve dificuldades em vê-la retratada de forma tão linda esteticamente quanto socialmente violenta no cinema em 2002, por Fernando Meirelles, ignorando o que havia de belo na comunidade. “O filme vai ganhar muitos prêmios em festivais e Cidade de Deus ficará com o troféu de favela mais violenta do mundo”, disse ao repórter, então no Jornal da Tarde, em uma entrevista de 2002, feita na própria favela. Agora, ao ver o céu escurecer com nuvens carregadas sobre o bolsão que abriga mais de 38 mil pessoas na zona oeste do Rio, Bill agiu rápido.
Assustado com as gentilezas oferecidas ao novo coronavírus para sua temporada destruidora no País, de aeroportos livres de triagem à ausência de um plano de contingência que deveria existir desde as primeiras notícias, logo depois do carnaval, Bill viu o vírus fazer o caminho inverso às lógicas das pragas, chegando por cima, de avião, para descer às quebradas da CDD. Um dia antes de surgir o primeiro infectado do bairro nos registros no Ministério da Saúde, ele se sentou e criou Quarentena, um rap que pede o isolamento da população sem deixar de incomodar o poder público: “Perderam tempo com coisa que não interessa / Quem tem noção do vírus tá com medo, tá com pressa, sei / Incompetência vem na frente sim / Se dependesse deles a epidemia não teria fim / Presos na inércia / É cada um por si, a cena é essa / O fim de tudo para alguns é quando tudo começa / Sei, com povo gado é mais fácil levar de lambuja / Lavaram as mãos mas a boca continua suja…”.
Isso foi em um sábado. No domingo, com um microfone e o computador que tem em casa, gravou a voz e mandou tudo para o produtor Mortão, de Goiânia. Na terça, a música estava pronta. Ao mesmo tempo, conseguiu um equipamento de filmagem com amigos, que o deixaram em sua porta, no bairro vizinho a Cidade de Deus. Ele higienizou tudo, posicionou as câmeras e, pela primeira vez, movido pela urgência de uma população que tem rappers em consideração mais elevada do que ministros e presidentes, gravou e editou o vídeo de Quarentena. A edição e a montagem ficaram com Rodrigo Felha e Jefferson Teófilo. Bill espera voltar também a produzir novos episódios para a quarta temporada do programa Hip Hop Brazil, que dá espaços para a produção do rap independente, com entrevistas, clipes e shows. A previsão de exibição do próximo programa é dia 2 de maio, às 22h30, no canal Music Box Brazil.
Sua fala sai de dentro da mais temerosa realidade dos novos tempos. “Tem favelas no Rio sem água, acho isso criminoso. O vírus já chegou à Cidade de Deus, mas não sabemos o número de infectados porque não existem testes. As pessoas vão para as Upas (unidades de pronto-atendimento), são atendidas e mandadas para quarentena em casa. Mas as casas estão cheias de gente.” No trajeto vertical do vírus, de cima pra baixo, as pessoas se infectaram primeiro na luxuosa Barra da Tijuca e, logo em seguida, nas vizinhas Cidade e Rio das Pedras, favelas onde, não por acaso, vivem as senhoras e os senhores que trabalham nas casas e nos prédios da Barra.
Bill diz estar surpreso com a consciência que percebe entre os moradores.
“A maioria está entendendo que precisa ficar em casa. Sinto que estão tentando colaborar, acompanhando as notícias.” E a imagem do presidente na TV dizendo que as crianças devem voltar para a escola e o povo ao trabalho? Qual foi o impacto? “O único impacto que senti aqui em Cidade de Deus foi o da indignação. Não dá para ir na contramão de uma ordem mundial. Eu fiquei perplexo ao ver aquilo na TV, mas aliviado ao sair na rua e ver que as pessoas estavam em casa.” As pessoas estão ligadas nas notícias do mundo, não são mais tão manipuláveis. Para ele, as relações de um mundo pós-pandemia serão revistas. “Nunca mais seremos os mesmos.
Nossos hábitos de convívio social vão mudar completamente.” Uma face que nunca viu de Cidade de Deus seria algo que pode ser chamado nesse contexto de “bom”. “Acordo cedo com os pássaros e o galo cantando, sem sons de tiro, sem sirenes da polícia. As praias estão completamente limpas, parece um descanso do planeta ”
Quando fala do cuidado das pessoas ao não sair às ruas, surge um novo assunto. Não seria o tráfico de drogas e a milícia, os dois poderes paralelos instituídos em bairros onde o braço oficial não chega? “Eu vi nesses dias uma apresentadora de um telejornal mandando um recado para os chefes do crime. Ela dizia: ‘Se vocês têm o comando da região, então é a hora de exercê-lo’. Sim, o toque do crime manda parar e a favela zera tudo. Aqui, Vila Vintém, Gardênia Azul, ninguém anda nas ruas.” Bill tem se surpreendido também com a força da comunidade em se organizar, segundo ele, de forma inédita. “Elas estão arriscando suas vidas para entregar cestas básicas pela comunidade. Eu nunca tinha visto isso antes por aqui. É uma lição.”
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.