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Um mundo em convulsão

Já fazia muito tempo que não tínhamos um panorama de crise política que se espalha e cada vez mais ameaça os pilares da democracia. Desde o fim da Guerra Fria, o mundo não vivia um momento tão ameaçador e com perspectivas tão sombrias. O tradicional establishment movido por consensos e alternâncias entre direita e esquerda vem sendo sacudido por movimentos populistas e nacionalistas que dão fôlego cada vez maior a par­tidos e a lideranças de extrema-direita. O que ocorre hoje no Brasil deve ser visto como uma expressão local de tudo isso com características e matizes próprias, dentre as quais se destaca a hipócrita campanha contra a corrup­ção e o medo da população diante da falta de segurança.

Em um rápido relance, comecemos com a eleição de Trump que levou os EUA a uma polarização nunca vista e que culmina agora com o processo de impeachment. O Brexit no Reino Unido expõe os britânicos a um futuro incerto. A política italiana defenestrou MatteoSalvini, o grande aliado de Bolsonaro na Europa, mas pode ser coisa momentânea, pois ali também a extrema-direita tem crescido. Netanyahu em Israel pode até conseguir uma sobrevida, mas dificilmente vai se livrar da Justiça. Essa onda também atinge a América Latina e, como se não bastassem os casos da Venezuela e da Argentina, agora temos a crise institucional no Peru.Como pano de fundo de toda essa tragédia, temos a guerra comercial entre Estados Unidos e China. Até parece o retorno da Guerra Fria.

Em artigo publicado no jornal Outras Palavras, Boaventura de Sousa Santos focaliza o seu Portugal como alvo estratégico do internacionalismo da extrema-direita. É o único governo de esquerda na Europa numa legislatura completa e terá eleições neste final de semana. E os tempos difíceis da crise eco­nômica vão ficando para atrás. Para Boaventura, “Portugal representa o elo fraco por onde a extrema-direita pode atacar a União Europeia. O objetivo central é, pois, destruir a UE e fazer com que a Europa regresse a um continente de Estados rivais onde os nacionalismos podem florescer e as exclusões sócio­-raciais podem ser mais facilmente manipuláveis no plano político”. Triste.

Para a extrema-direita internacional, a direita tradicional desempenha um papel limitado para o seu objetivo, pois foi durante muito tempo a força motora da União Europeia. Assim é tratada com relativo desprezo, pelo menos até se aproximar, pelo seu próprio esvaziamento ideológico, da extre­ma-direita, tal como está acontecendo na Espanha. As forças de esquerda, ao contrário, são forças a neutralizar. Para a extrema-direita, as esquerdas terão se dado conta de que a UE, com todas as suas limitações, que durante muito tempo foram razão suficiente para algumas dessas esquerdas serem antieuropeístas, é hoje uma força de resistência contra a onda reacionária que avassala o mundo.

Boaventura lembra bem que não se pode esperar da UE muito mais do que a defesa da democracia liberal, mas esta corre mais riscos de morrer democraticamente sem a UE do que com a UE. E as esquerdas sabem por experiência que serão as primeiras vítimas de qualquer regime autoritá­rio. Talvez se lembrem de que as diferenças entre elas sempre pareceram mais importantes quando vistas do interior das forças de esquerda do que quando vistas pelos seus adversários. Por mais que socialistas e comunistas se digladiassem após Primeira Guerra, Hitler, no poder, não viu entre eles diferenças que merecessem diferente tratamento. Liquidou-os a todos.

Muito dessa reflexão de Boaventura sobre a Europa vale também para o Brasil. Mas há diferenças. A extrema-direita no Brasil ganhou um espaço que ela não tem na Europa: um assento na mesa de negociações com outros setores liberais de centro-direita. O desejo cego de minar o governo tido como de esquerda e espernear a derrota nas urnas fazem com que partidos de direita apoiem estratégias golpistas e marchem ao lado de grupos extre­mistas e criminosos. Foi o que fez a maioria do PSDB. É bom lembrar aqui a campanha de Dória chamando Márcio França de esquerdista e tentando a todo custo identifica-lo com o PT. Para usar uma imagem antiga, corre-se o sério risco aqui de jogar fora o bebê junto com a água de banho. Esse equí­voco tem nos levado a pagar um preço muito alto desde a última eleição. Kyrie eleison!

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