A pedido do Ministério Público Federal (MPF), o Tribunal Regional Federal da 3ª Região (TRF3) determinou a instauração de uma ação penal contra onze pessoas envolvidas em um esquema de tráfico de pessoas e exploração sexual em Ribeirão Preto entre 2017 e março deste ano. Naquele mês, os réus foram alvos da Operação Cinderela, ação conjunta do MPF, da Polícia Federal, do Ministério Público do Trabalho (MPT) e da Secretaria de Inspeção do Trabalho do Ministério da Economia. Com a ordem judicial de segunda instância, a tramitação do processo continuará na esfera federal.
O acórdão do TRF3 é resultado de um recurso do MPF contra uma decisão proferida em junho deste ano pela 5ª Vara da Justiça Federal em Ribeirão Preto. O juízo federal rejeitou a denúncia contra os acusados por entender que o crime de exploração da prostituição alheia englobaria o crime de redução de pessoas a condições análogas à escravidão – o único que possibilitaria o prosseguimento do caso no âmbito federal. Assim, o entendimento de primeira instância acarretaria a remessa dos autos à Justiça Estadual para a análise dos demais delitos imputados (tráfico de pessoas para exploração sexual, rufianismo qualificado e exercício ilegal da medicina).
Os réus aliciavam principalmente travestis e transgêneros das regiões Norte e Nordeste por meio de redes sociais. As vítimas chegavam a Ribeirão Preto com a promessa de condições dignas de trabalho e bons salários, além da oportunidade de realizar procedimentos estéticos. A realidade que encontravam, no entanto, era outra. Cobranças exorbitantes por passagens, hospedagens, vestuário e até mesmo atividades banais, como uso de microondas, geravam dívidas impagáveis que, na prática, mantinham essas pessoas presas ao esquema. Os valores exigidos correspondiam também às cirurgias plásticas a que se submetiam, feitas em condições precárias e com uso de materiais impróprios, como o silicone industrial, o que implicava sérios riscos à saúde.
Forçadas à prostituição para saldar as dívidas, as vítimas eram obrigadas ao pagamento de porcentagens sobre os programas realizados e de taxas para o uso dos pontos na cidade onde ofereciam os serviços sexuais. A decisão de primeira instância havia estabelecido que essa exploração econômica prevaleceria sobre as condutas que caracterizavam a redução a condições análogas à escravidão. O TRF3, porém, rebateu o argumento, definindo que os crimes são diferentes e foram cometidos concomitantemente, o que impede a desconsideração de qualquer um deles para o prosseguimento da ação.
“A ‘comissão’ auferida pelos investigados decorria do resultado da prostituição, ou seja, os réus apropriavam-se de uma parcela do pagamento recebido pelas vítimas por programas sexuais realizados. Essa atividade, ao menos em tese, não se confunde com a cobrança de dívidas abusivas referentes à hospedagem, vestuário, alimentação etc, que faziam com que aquelas pessoas em situação de extrema vulnerabilidade fossem impedidas de deixar o local (imóvel dos denunciados), sendo obrigadas a permanecer na prostituição, a fim de quitar esses débitos”, destacou o acórdão.
Os investigados responderão, na medida de suas responsabilidades, pelos crimes de tráfico de pessoas, redução à condição análoga à de escravo, rufianismo, exercício ilegal da medicina e organização criminosa. Se condenados, as penas podem chegar a mais de 34 anos de reclusão. Um dos supostos líderes da quadrilha desmantelada pela Operação Cinderela está preso desde dezembro de 2017.
Alexandre Ferreira da Costa, de 46 anos, conhecido como “Deco”, já tem passagens pela Justiça por tráfico de drogas e foi acusado de homicídio pela morte de Paulo Vicente Lopes da Silva, de 40 anos, travesti conhecida como “Paulete”, no Quintino Facci I, na Zona Norte da cidade, em fevereiro de 2014 – foi absolvido em outubro do ano passado, mas o Ministério Público Estadual (MPE) recorreu.
Na época, Costa alegou à polícia que agiu em legítima defesa após se envolver em uma briga. Também é suspeito de causar a morte de outra transexual em 2013, ao aplicar silicone industrial na vítima. Helen morreu de parada cardíaca. Costa é suspeito de ter executado outra jovem há três anos.
Segundo a delegada Luciana Maibashi Gebrim, da Polícia Federal, uma travesti que veio do Pará está desaparecida desde 2016. O adolescente Marcelino de Souza Negrão Neto, de 14 anos, veio para Ribeirão Preto em 2015. Conhecida como Nety Patrícia, ficou hospedada no “castelo das trans” e pagava diária de R$ 70, mas logo ficou endividada. O último contato com a família foi em março de 2016.
“Deco” foi condenado a nove anos de prisão por homicídio doloso – apesar de não ter a intenção de matar o motociclista Danilo Braga Eroico, de 33 anos, ele sabia dos riscos ao desrespeitar o sinal vermelho no cruzamento da avenida Meira Júnior com a rua Henrique Dumont, no Jardim Mosteiro, Zona Nordeste de Ribeirão Preto, na madrugada de 27 de novembro de 2017, e não parou para prestar socorro. A pena original era de 20 anos, mas o Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ/SP) reduziu-a em junho deste ano e o advogado Hamilton Paulino Pereira Junior disse que iria pedir a progressão para o regime semiaberto, pois seu cliente já cumpriu um sexto da sentença.