Tribuna Ribeirão
Cultura

Tempos pandêmicos inspiram peça

Reprodução
Por Dirceu Alves Jr., especial para o Estadão

Os tempos são outros e os problemas foram remodelados por certas variações, algumas delas bem piores. Quando Gerald Thomas escreveu a peça Terra em Trânsito, em 2006, se tratava de um manifesto contra o presidente americano George W. Bush e a ressaca ainda latente do atentado às torres gêmeas do World Trade Center, em Nova York. Passados 15 anos, o dramaturgo e diretor arremessa suas palavras como petardos a Donald Trump, que, mesmo fora da Casa Branca, é revivido por seus seguidores, um deles o presidente brasileiro Jair Bolsonaro. “Não gosto da obrigação de atualizar a minha obra, o que precisa ser dito continua ali, eu tive é que me adaptar a outras condições de trabalho”, afirma o artista, sobre a versão digital da peça, que estreia dia 10 no YouTube. “Não adianta brigar, o resultado é limitado, precário, temos uma câmera estática, por que eu vou querer sofisticar algo que vai ser visto em uma telinha de celular.”

Em Terra em Trânsito, uma estrela do canto lírico (representada por Fabiana Gugli) está trancada em seu camarim pouco antes de interpretar a ária Liebestod, da ópera Tristão e Isolda, e perde gradativamente a noção da realidade. Ela exagera nos ansiolíticos, trava um diálogo alucinado com seu cisne (o ator Marcos Azevedo) e percebe que foi esquecida, que dali não sairá jamais, como qualquer habitante da Terra, isolado em casa, enquanto o coronavírus assombra a humanidade. “Tudo o que era metalinguagem virou realidade, o Brasil é alimentado por Big Brother e redes sociais e nós passamos a viver diante de um espelho, como o do camarim da personagem”, justifica Fabiana, que foi indicada para o Prêmio Shell de melhor atriz pela montagem original.

Na versão audiovisual, que terá exibições gratuitas aos sábados e domingos, às 20h, até o dia 25, e ficará disponível durante o mês de maio, o trabalho, claro, precisou ser adequado ao protocolo pandêmico.

Thomas, direto de seu apartamento em Nova York, comandou Fabiana, que, diante da tela do computador, fez da sala de sua casa, em São Paulo, o espaço cênico. “Recuperei a cadeira usada no cenário de Rainha Mentira, peguei uma mesa emprestada com a minha mãe e fomos nos adequando ao que era necessário”, conta ela, que só encontrou pessoalmente o diretor de filmagem, Leon Barbero, na véspera do registro. O problema foi driblar as constantes falhas de conexões da internet e convencer o criador de Terra em Trânsito de que, no final das contas, tudo daria certo, não seria uma vergonha. “É difícil para o Gerald abrir mão das convicções artísticas e é lógico que ele seria o melhor cameraman de seu próprio trabalho, mas, neste momento, é impossível pensar em trazê-lo ao Brasil”, declara Fabiana, que conhece bem o seu gênio, afinal, os dois foram casados por sete anos e trabalharam juntos em 13 espetáculos.

Gerald Thomas ladra, ladra, mas normalmente não morde. “Eu e a Fabi sempre tivemos a capacidade de brigar por qualquer motivo e, logo depois, fica tudo bem”, conta. O encenador de Trilogia Kafka, The Flash and Crash Days e Um Circo de Rins e Fígados, no entanto, passa longe desse coro resiliente em torno do chamado teatro digital que despontou na pandemia. Pelo contrário, Thomas pede respeito aos grandes espetáculos e filmes antes de classificar assim tais transmissões e torce para que, em breve, esse formato online seja esquecido. “Acho de uma extrema petulância quem tenta convencer as pessoas de que está implantando uma nova linguagem. Teatro é ritual, é contato, é a plateia quem contamina o espetáculo, a internet é solitária, somente um atalho”, define.

Thomas pode realmente ter pouca paciência com o teatro na pandemia, mas nem por isso esnobou uma nova investida. “Espero ter de fazer isso por pouco tempo”, avisa. Com a mesma Fabiana Gugli, ele prepara Trilogia Beckett, uma reunião de três peças curtas do dramaturgo irlandês, Aquela Vez, Cadeira de Balanço e Footfalls, que será exibida pelo canal do Sesc e, em um futuro possível, montada presencialmente. “O meu próprio pessimismo me assombra e critica: ‘Nossa, você vai fazer Beckett mais uma vez? Trata de olhar para a frente, cara’.”

E, dando ouvidos ao superego, Gerald Thomas incorpora um lapso de otimismo e escreve um texto inédito, com o título provisório de Estilhaçado, que deve montar no Brasil, de forma presencial, assim que a pandemia passar. A peça, criada em homenagem ao ator Luiz Damasceno, um dos integrantes da sua extinta Companhia de Ópera Seca, enfoca o embate entre dois atores de gerações diferentes. “O teatro existe desde antes da escrita, já enfrentou tantos fantasmas e não vai ser por causa da covid que vai mudar ou deixar de existir”, sentencia o artista, com uma surpreendente ponta de esperança, olhando para a frente.

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.

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