Por: Adalberto Luque
A vendedora Kelly Cristiana da Silva vivia uma nova fase em sua vida. Aos 41 anos, havia acabado de sair de um relacionamento conturbado. O que começou como paixão tornou-se pesadelo e durou um ano e meio.
A gota d’água foi quando, após uma discussão, o homem teria jogado ácido no rosto de Kelly, causando grave queimadura. Isso ocorreu em julho de 2020 e ela conseguiu uma medida protetiva de urgência, impedindo a aproximação do agressor.
Tarde de domingo, 8 de novembro de 2020. Kelly e uma amiga foram a um restaurante na esquina da Rua Floriano Peixoto com Avenida Francisco Junqueira, Centro de Ribeirão Preto. Feliz com o momento, ela postou na “story” de sua rede social a foto de dois drinques simulando um brinde. E deu a localização.
Mal sabia Kelly que, apesar da medida protetiva, suas redes sociais eram vigiadas pelo ex-namorado. Ele praticava stalking digital e soube na hora onde Kelly estava. Apanhou uma arma e foi até o local, aguardando pacientemente na esquina da Rua Duque de Caxias com a Rua Florêncio de Abreu.
Terminada a refeição, Kelly e a amiga se levantaram, pagaram a conta e foram até o carro por aplicativo que haviam chamado. O homem com capacete de moto se aproxima e efetua três disparos. A amiga foi ferida no quadril, de raspão. Kelly foi atingida com dois tiros na cabeça e morreu na hora. Depois ele fugiu do local.
Mesmo separados há sete meses, a vendedora foi vítima de stalking, antes de se tornar vítima de feminicídio. O autor do crime teria contado com as informações muitas vezes obtidas com facilidade nas redes sociais.
Intimidação
De acordo com a Kaspersky, empresa privada internacional de segurança virtual do Reino Unido e com atuação no Brasil, stalking virtual é um dos crimes que mais crescem no mundo. É um crime grave que pode destruir vidas, e usa a Internet para atingir e intimidar uma vítima.
Da mesma forma que a rede mundial de computadores transformou e facilitou a vida das pessoas, proporcionando uma aproximação virtual, trouxe também um lado negativo onde as pessoas usam essa mesma tecnologia para assediar e intimidar. Há muitos casos, inclusive, de famosos que são vítimas de perseguição de fãs, que começam a seguir seus perfis e, em alguns casos, torna-se próximos da celebridade. Até que a situação sai de controle e vira risco real.
Famoso
Stalking é um termo inglês que significa perseguir ou espreitar. Stalker, por sua vez, é o perseguidor. Não é uma prática necessariamente nova. Muitas celebridades foram alvo de stalkers antes mesmo da popularização da internet.
Um caso famoso foi o do ex-Beatle John Lennon. Depois de terminarem com a banda inglesa, cada membro tomou um rumo diferente. Lennon se casou com Yoko Ono e foi morar em Nova Iorque, nos Estados Unidos.
No dia 8 de dezembro deixou o prédio onde residia, o edifício Dakota. Na saída, um homem lhe pediu autógrafo. Quando voltou, à noite, Lennon, de 40 anos, foi alvejado cinco vezes pela pessoa que lhe pediu autógrafo horas antes. Morreu vítima dos ferimentos causados pelos disparos.
Mark David Chapman foi preso imediatamente e confessou o crime. Anos depois, disse à Revista Rolling Stone que sempre acompanhava Lennon e o matou em busca de fama.
Características
O stalking, comumente, tem por característica o comportamento de perseguir alguém, rastrear sua localização, monitorar suas atividades. No stalking virtual, acrescente-se também o amplo material fornecido, involuntariamente pelas vítimas, através de suas redes sociais.
Segundo a empresa Kaspersky, há casos em que o perseguidor chega a instalar GPS nos carros de suas vítimas, usar spyware de geolocalização nos seus telefones e rastrear obsessivamente os hábitos de suas vítimas nas das redes sociais.
Há ainda os cyberstalkers, que chegam a ações mais agressivas. Muitas vezes começando por bullying, onde a vítima é exposta nas redes sociais. Há perseguidores que criam endereço eletrônico pirata em nome da vítima e mantêm contatos pessoais e profissionais.
Com a Inteligência Artificial OIA), há a falsificação de fotos pornográficas e, em casos extremos, criam vídeos como se fosse a própria vítima falando. Como? Uma foto capturada em rede social, uma mensagem de voz da vítima, adicionado a um programa de IA e eis o vídeo que parece real. Em etapa mais avançada, o stalker incorpora a vida da pessoa assediada, roubando sua identidade, criando perfis falsos em redes sociais ou blogs.
1,5 milhão nos EUA
De acordo com o portal Brandongaille.com, nos Estados Unidos cerca de 1,5 milhão de pessoas sofrem com perseguição virtual pelo menos uma vez por ano. Uma em cada 12 mulheres americanas sofrerá pelo menos um incidente de stalking virtual ao longo da vida.
A vítima média de stalking é mulher e tem entre 18 e 29 anos, mas dependendo do local e tipo de relação, homens podem responder por até 56% dos casos. O stalking pode estar ligado à violência de gênero, pois 70% das vítimas conheciam a pessoa que as perseguia.
Embora o e-mail seja a forma mais usada de stalking, de acordo com o Brandongaille, o Facebook é o método mais comum de agravamento de um incidente. Pelo menos 22% das vítimas admitiram que isso ocorreu na rede social, afinal, 63% dos perfis do Facebook são visíveis ao público e algumas configurações de privacidade podem permitir que perseguidores virtuais vejam mais informações até do que amigos do Facebook consigam ver.
Muitas vezes as pessoas não se dão conta do risco, até porque, inconscientemente, elas mesmas praticam o stalking. Em pesquisa realizada nos EUA, 70% das pessoas admitiram usar a conta do Facebook de um amigo ou criarem uma conta “fake” para verificar o perfil de um ex depois de serem excluídas e 74% dos usuários verificam o perfil do novo parceiro do ex regularmente.
Sentimento de vulnerabilidade
Presidente da Associação SOS Bullying, a advogada Ana Paula Siqueira, explica que o cyberbullying é crime previsto pelo Código Penal brasileiro e caracterizado pela prática de assédio moral, humilhações, ameaças e ofensas reiteradas contra uma pessoa, utilizando meios digitais como redes sociais, e-mails e mensagens de texto.
“A intenção é causar sofrimento emocional, medo ou isolamento social à vítima. As consequências podem ser devastadoras, incluindo problemas de saúde mental como depressão, ansiedade, baixa autoestima e, em casos extremos, suicídio. O cyberbullying é uma forma de violência que transcende as barreiras físicas, tornando o agressor onipresente na vida da vítima”, explica Ana Paula.
Igualmente previsto no Código Penal, de acordo com a especialista, o cyberbullying envolve perseguição contínua e invasiva, por meio de tecnologias digitais. “Isso inclui o monitoramento constante, envio de mensagens incessantes, ameaças ou a vigilância das atividades online da vítima. O objetivo é controlar, intimidar e causar medo, frequentemente resultando em um estado de constante alerta e insegurança para a vítima. O cyberstalking pode envolver a divulgação de informações pessoais da vítima, agravando ainda mais o sentimento de vulnerabilidade”, acrescenta.
Para Ana Paula, ambos os crimes estão interligados pelo uso da tecnologia para exercer controle e infligir sofrimento psicológico. “Exploram a capacidade da internet de proporcionar anonimato e acessibilidade, facilitando abuso contínuo sem a necessidade de proximidade física. Isso amplia o alcance e intensidade do impacto emocional nas vítimas”, aduz a presidente da SOS Bullying.
A legislação brasileira enfrenta desafios pois a população desconhece seus direitos. “É crucial que haja conscientização, prevenção e medidas de apoio psicológico e legal para combater esses crimes. A SOS bullying trabalha de forma contínua e incessante para criar um ambiente digital seguro, onde comportamentos abusivos sejam denunciados e punidos rigorosamente, garantindo o bem-estar e a segurança de todos os usuários”, encerra.
Cautela em relacionamentos pela internet
Coronel aposentado da Polícia Militar e especialista em Segurança Pública, Marco Aurélio Gritti explica que o stalking está inserido no Código Penal desde 2021 e trata-se de conduta reiterada, obsessiva, em perseguir alguém de forma física ou virtual. Razão pela qual ele recomenda muita cautela nos relacionamentos, sobretudo pela internet.
“O perseguidor pode ser ou não do convívio social da vítima. Atentar sempre para as ferramentas virtuais de privacidade e cuidado ao expor rotinas e circunstâncias pessoais nas redes. Acessos em redes públicas também devem ser evitados”, observa Gritti.
De acordo com o especialista em segurança, até a edição da lei, havia dificuldade em criminalizar a conduta do perseguidor que, muitas vezes, utilizava isso para se manter impune. “Contudo, o tipo penal contemplou a conduta criminosa em perseguir a vítima, seja por qualquer meio”, aduz.
Por segurança, Gritti aconselha à vítima, logo que suspeitar de perseguição, ligar para o 190. “Reúna provas e prints e elabore boletim de ocorrência, sobretudo para análise quanto à expedição de medida protetiva”, conclui.