“Um muçulmano, um grande amigo meu, estendeu a mão ao nosso irmão judeu. Nosso irmão judeu, que não sabe dizer não, sempre que pode ajuda o nosso irmão cristão. E quem é crente, ajuda o pai de santo, amigo da gente”, diz a letra do reggae “Um ajuda o outro”, composto pelo sacerdote hare krishna (hinduísmo) S.G. Mahesvara Caitanya Das – ou apenas Mahesh. Mais do que palavras, os versos simbolizam o que integrantes da banda inter-religiosa Soul da Paz praticam: a convivência pacífica das diferentes crenças.
A banda, que acaba de lançar nas plataformas digitais o álbum “Soul da Paz”, com oito músicas, nasceu há sete anos, em São Paulo, por iniciativa de Mahesh. Desde 2006, ele participa e organiza eventos em defesa da liberdade religiosa. Nesses encontros, além de palestras, era de praxe haver apresentações de música ou leitura de poemas – algo nem sempre interessante para todos.
“Às vezes, os umbandistas tocavam atabaques, os hare krishnas faziam seu som, havia corais. Isso desagradava a uma ala ou outra. Pensei que seria bom que cada um desses líderes participasse de uma banda, assim o público olharia de maneira igual para as apresentações, além de chamar atenção para o trabalho”, conta.
Masheh já era amigo do rabino Gilberto Ventura e dividiu com ele a ideia. Depois, foi só convidar outros líderes. Assim, passaram a integrar o grupo os católicos André Herklotz e Paulo Miranda, o budista Ricardo Camilo, o bispo anglicano Dom Flávio Irala, o umbandista Pai Torres, o hare krishna Bhakta João Rafael, o pastor Eliel Leonardo, o espírita kardecista Zen Leão, os metodistas Júlio D’Zambê e Débora D’Zambê e o espírita cristão Marcio Scialis.
“Vou muito a encontros inter-religiosos, mas não acredito em discursos. Muitos estão lá só para fazer propaganda. Em um deles, um líder evangélico me disse ‘você sabe que aqui só eu e você servimos a Deus’. Discordo. Todos estão em busca do divino e a banda traz isso para a prática”, diz o rabino Ventura, vocalista e letrista.
Ele está à frente da Sinagoga Sem Fronteiras, no bairro do Pacaembu, que acolhe cristãos-novos que desejam retornar ao judaísmo e luta contra o antissemitismo. Pai Torres, umbandista há 15 anos, conta como recebeu a convocação para o grupo. “No começo, achei um pouco assustador, inusitado”, diz o percussionista. O pastor Eliel Leonardo, da Assembleia de Deus de Guarulhos, aceitou o convite após um episódio de intolerância religiosa virar notícia.
Ao sair de um culto de candomblé, no Rio de Janeiro, uma menina de 11 anos foi agredida verbalmente por pessoas com Bíblias nas mãos, o que desagradou ao pastor. “Fui no primeiro ensaio e fiquei até hoje”, diz ele, um dos vocalistas. Para Eliel, que estudou em seminário neopentecostal e trabalhou com o ex-jogador Jorginho em uma célula da igreja na Alemanha, a banda é uma “santa provocação”, e participar dela faz com que se aprimore na própria crença.
Sem cerimônia
A banda, que já fez inúmeras apresentações antes de chegar ao estúdio, não tem caráter ecumênico ou de sincretismo religioso, como faz questão de frisar Mahesh. “Não fazemos qualquer tipo de cerimônia em conjunto. Respeitamos quem é sincrético, mas penso que o mais difícil é conviver com o diferente. No sincretismo, você destrói as diferenças, torna homogêneo, e, assim, fica mais fácil. O interessante é conviver com o diferente”, diz.
“Não estamos juntando religiões. Estamos mostrando que podemos ser amigos e unidos em busca da paz, da amizade e da justiça social”, completa o rabino Ventura. A ideia aparece na letra dos rocks “Somos todos iguais” e “Sementes da paz”, de Mahesh. O primeiro versa sobre uma família em que cada um segue uma religião e todos convivem em paz; o segundo pede que cada um faça sua parte para um mundo melhor.
Na Soul da Paz também há contestação. O rap “É Ki Pá”, composto por Ventura, nasceu inspirado em um episódio de 2010, em que uma moradora de Higienópolis, bairro nobre de São Paulo, declarou que a nova estação de metrô na região atrairia “gente diferenciada” para lá. A culpa caiu para os judeus, tradicionais moradores do bairro, acusados de serem elitistas. “Eu sou anárquico, só gosto de rap. O profeta Jeremias era rapper. A maioria dos judeus não é elitista”, reforça.
Mas como se sentem os religiosos ao cantarem músicas que, aos olhos da religião, podem ser profanas? “Não temos restrições musicais. Costumo dizer que a umbanda é um tiquinho de cada coisa”, diz Pai Torres. “As músicas são autorais e representam o que a banda defende, que é o respeito ao próximo. Assim como Jesus conversava com pessoas que não o aceitavam, eu também converso. Vão pensar que eu estou com o demônio? Sim, mas não ligo”, diz o pastor Eliel.
Com a ideia de produzir um álbum e com o processo de gravação – no fim de 2019 – já em andamento, os integrantes da Soul da Paz sentiram a necessidade de que um produtor gerenciasse os trabalhos. Foi então que, em um passeio pelo Shopping Higienópolis, o rabino Ventura viu o músico Kiko Zambianchi (autor de sucessos como “Eu te amo você” e “Primeiros erros”). Não pensou duas vezes: mesmo sem conhecê-lo, foi convidá-lo para participar do projeto.
“Pensei: que coisa louca! Vários religiosos, cada um com uma crença, fazendo música juntos. Resolvi aceitar. O rabino é uma figura agregadora, inteligente. Isso me motivou também”, diz Zambianchi, que se lembrou quando, aos 15 anos, teve síndrome do pânico. Sem um diagnóstico preciso, ele se apegou à espiritualidade. “Fui à igreja, à umbanda, ao hare krishna. Tudo me ajudou. E estar com eles nesse projeto era uma oportunidade de relembrar essa minha busca.”
Zambianchi afirma que precisou ser exigente quando assumiu a produção do álbum. “Eu disse, brincando: ‘sei que vocês são chefes em suas religiões, mas, aqui, não tocam nada e a religião não vai ajudar’”, conta. No mais, fez alguns ajustes, simplificou processos e ensaiou bastante. “Foi todo mundo melhorando. Antes, era um apanhado de música. Hoje, eles têm um som próprio”, elogia.
Ele mesmo tocou em algumas faixas, além de chamar o amigo Bruno Gouveia, do Biquini Cavadão, para cantar na faixa “The band of peace and soul”. Do ambiente do estúdio, o músico só guarda boas recordações. “Sou testemunha que eles se entendem de verdade. Os papos eram maravilhosos. Tirei muitas dúvidas sobre religião”.