Por Rafael Moraes Moura
Se não fosse a pandemia, o carnaval do novo coronavírus seria o carnaval de Martinho da Vila. Em 2021, o cantor, compositor e escritor finalmente figuraria como personagem central de um enredo da sua escola, a Vila Isabel.
A Azul e Branco da zona norte do Rio já o exaltou em outros momentos, mas jamais dedicou um carnaval inteiro para contar a vida e a obra do sambista, autor de clássicos que embalaram seus foliões na Avenida, como O Sonho de Um Sonho, Pra Tudo se Acabar na Quarta-Feira e A Vila Canta o Brasil Celeiro do Mundo – Água no Feijão Que Chegou Mais Um (hino carnavalesco do último campeonato, em 2013, sobre a vida do homem no campo).
A covid-19, no entanto, se espalhou pelo mundo, ceifou 235 mil vidas no Brasil e levou ao cancelamento dos desfiles na Marquês da Sapucaí, adiando para 2022 a aguardada homenagem ao baluarte
Outra homenagem, mais reservada, veio na última sexta-feira, quando o sambista – nascido em um sábado de carnaval – completou 83 anos e tirou a foto que ilustra esta reportagem. O aniversário foi comemorado com um bacalhau no almoço, marcado por mensagens afetuosas que chegaram dos quatro cantos do mundo. Enquanto aguarda finalmente ser vacinado (a imunização foi agendada para a próxima terça-feira, se ainda houver doses disponíveis no Rio), Martinho praticamente não sai mais de sua residência, um condomínio na Barra da Tijuca onde vive com a mulher, Cléo, e dois filhos.
Costuma caminhar pela ciclovia, levando a vida “devagar e sempre”, e evitando contato com o público por conta do distanciamento social. “Eu gosto de falar com as pessoas e apertar a mão, mas não dá mais”, diz o artista, que pertence à faixa etária mais vulnerável aos efeitos da covid-19. A pandemia, avalia Martinho, deixou o mundo louco.
“O Brasil tá complicado, as coisas pioraram muito. Os contrastes sociais, a pobreza e a criminalidade aumentaram. Parece que estamos revivendo a Revolta da Vacina, e o presidente (Jair Bolsonaro) também ajuda nisso (com comentários críticos à imunização). O chefe ajuda e tem seus seguidores. O retrocesso está ocorrendo de maneira clara. Eu acho que a gente vai ter de aturar ele (Bolsonaro) por mais tempo”, desabafa.
As madrugadas pandêmicas se transformaram em espaço criativo para elaborar um livro de contos, batizado com o título provisório de Contos Sensuais e Algo Mais. “São contos sobre histórias atuais, de negritude, famílias negras, suburbanas, coisas que não aparecem muito”, antecipa. Em um dos contos, uma babá acaba casando com o menino que criava – o livro aguarda uma editora para ser lançado.
Em compasso de espera também está o mundo do carnaval. Para Martinho, o adiamento dos festejos momescos, ainda que seja “chato”, foi uma decisão acertada. “Fazer um carnaval em julho, com este país ainda sofrendo com a pandemia, não ia ser legal. A gente tá vivendo tudo diferente, essa confusão total, que a gente não tá nem com a cabeça muito carnavalesca. No ano que vem, já vai dar pra fazer legal, vai ser bom”, diz.
“A Vila Isabel é uma filha que eu ajudei a crescer. O desfile pra mim é uma obrigação que eu cumpro, uma missão, porque eu tenho de alegrar as pessoas, alegro, me divirto, exerço minha capacidade criativa no samba-enredo. Agora, no próximo carnaval, não sei como vou me comportar. Não sei se olho pra cima, pra baixo, se aplaudo, se canto.”
Em condições normais de temperatura e pressão, a realidade seria outra: a essa altura do campeonato os carros alegóricos da Vila Isabel já estariam embalados, prontos para ser despachados para a Marquês de Sapucaí – e a pergunta que todos fariam seria: como virá Martinho? As alegorias e fantasias da escola estão todas desenhadas no papel, mas os trabalhos seguem parados no barracão “É um carnaval de grande relevância não só para o Martinho, mas para a comunidade, que tem ele não só como um baluarte, mas um grande mentor dos carnavais da Vila”, afirma o carnavalesco Edson Pereira.
“É um enredo biográfico que associa a construção dessa leitura visual que a Vila tem como uma escola negra. A gente tá fazendo uma associação de um Martinho que deixou essa herança negra para a escola.”
Raça negra
O primeiro campeonato da Vila na elite do samba veio em 1988, no centenário da abolição, com Kizomba – Festa da Raça, antológico samba de Luiz Carlos da Vila que surgiu de um enredo elaborado por Martinho. “A Vila Isabel proporcionou um espetáculo inesquecível de exaltação à raça regra, de empolgação e de samba puro, sem precisar recorrer a luxuosos artifícios nem a efeitos especiais”, informou o Estadão na época.
A Vila foi palco de um épico desfile de celebração da cultura negra, com capoeira e dança de jongo, homenagens a Mandela, Martin Luther King e o grito entoado no refrão “De que o apartheid se destrua!”. O regime segregacionista na África do Sul acabaria três anos depois. Hoje à noite, o desfile deverá ser reprisado pela TV Globo, que preparou um programa especial com os momentos mais marcantes da Sapucaí e do Anhembi, logo após o BBB.
“A vitória foi não só da Vila, mas do movimento negro. Foi completamente uma catarse, porque eu falei com o carnavalesco, ‘temos de fazer um carnaval diferente’, podemos tirar esses resplendores das costas das pessoas, esses pesos na cabeça, vamos fazer uma escola mais leve, diminuir esses brilhos, fizemos uma escola rústica. Foi muito incrível”, lembra Martinho
(Aqui, uma anedota carnavalesca: a vitória da Vila impediu o tricampeonato da Mangueira, que acabou penalizada pelo júri em comissão de frente. Comissão que deveria contar com a presença… de Martinho, que não reforçou a constelação de estrelas negras que abriu o desfile da Verde e Rosa, composta por Grande Otelo, Djavan, Glória Maria, Ruth de Souza e João do Pulo. “Me falaram que iam me pegar para levar pro desfile, mas ninguém apareceu. Dona Zica ficou brava, expliquei bastante, mas não ficou nenhuma mágoa”, garante.)
Segredo
Oito anos antes, em 1980, Martinho já tinha proporcionado outro grande momento na história dos desfiles, com o samba Sonho de Um Sonho. Cada samba é diferente, tem suas particularidades, mas o sambista confidencia que esse talvez seja o seu favorito. Em plena ditadura militar, os componentes da Vila cantaram um dos mais belos versos da História do gênero: “Na limpidez do espelho só vi coisas limpas/ Como uma Lua redonda brilhando nas grimpas/ Um sorriso sem fúria, entre o réu e o juiz/ A clemência, a ternura/ Por amor da clausura/ A prisão sem tortura/ Inocência feliz/ Ai meu Deus, falso sonho que eu sonhava”.
O que acharam os militares? “Não se tocaram, quando viram já tava lá…”, ri Martinho. “Desfilar com o próprio samba é uma coisa fantástica. Tenho 83, já fiz muita coisa, mas ainda tenho muita coisa pra fazer – mas não sei o quê.”
Do sonho de um sonho para o sonho de um carnaval pós-pandemia… O negro rei da Vila Isabel diz que, mesmo com o desfile adiado, já está preparando a cabeça para a homenagem na Sapucaí. “Quero ir pra Avenida como se fosse um simples componente, que vou cantar na Avenida a homenagem a um compositor de quem eu gosto”, diz. “O carnavalesco me disse ‘Vou te passando as coisas, pelas redes, e eu falei ‘amigo, não queria participar (do desenvolvimento do desfile)’. Porque o homenageado recebe a homenagem, tem de ter uma surpresa. Estou deixando assim.”
Martinho ainda não sabe como vai surgir no Sambódromo, mas deixa escapar que a escola está pensando em uma posição diferente – normalmente, os homenageados vêm no último carro e encerram os desfiles, como Maria Bethânia, Chico Buarque e Elza Soares. “O que o carnavalesco fizer, eu cumpro. Agora é mais difícil guardar segredo em um ano. Eu gosto de segredo com facilidade, que conto pra minha mulher, que conta pra amiga dela…”, diz.
Este repórter não resiste e também conta um segredo – mesmo sendo torcedor da Mocidade Independente, está na torcida para a Vila ser campeã. Ao saber que o enredo da Mocidade é uma outra homenagem, ao orixá Oxóssi, Martinho brinca: “A gente vai disputar com Oxóssi, e o resto não interessa. Vai ser um carnaval forte, vai ser difícil, mas a Vila vai ganhar”. Tomara.
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.