Tribuna Ribeirão
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Saudade: um sentimento, dois povos, muitas histórias 

Rodrigo Gasparini Franco * 
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A saudade é uma palavra que carrega em si um universo de significados e sentimentos, sendo frequentemente apontada como uma das mais intraduzíveis do idioma português. No entanto, apesar de ser compartilhada por brasileiros e portugueses, a saudade assume nuances distintas em cada cultura, refletindo as particularidades emocionais e históricas de cada povo. Enquanto no Brasil a saudade é frequentemente associada à nostalgia e a uma leve melancolia, em Portugal ela se apresenta como uma dor profunda, quase palpável, que encontra sua expressão mais emblemática nas letras do fado. 
 
Certa vez, passeando pelo Bairro Alto, em Lisboa, perguntei a um guia turístico qual era o sentido de saudade para um português. Ele me respondeu, com um olhar sério e uma voz carregada de emoção, que saudade, para os portugueses, diferentemente dos brasileiros, era algo muito mais melancólico, triste e que trazia dor. Essa explicação ficou gravada em minha memória, pois parecia sintetizar perfeitamente o que se sente ao ouvir um fado ou ao observar a forma como os portugueses falam sobre o passado, sobre as partidas e sobre o que ficou para trás. Para eles, a saudade é visceral, carregada de uma melancolia que parece permear a alma. Não é à toa que o fado, gênero musical que é patrimônio imaterial da humanidade, se tornou o veículo perfeito para expressar essa emoção. Nas vozes de Amália Rodrigues, Mariza e tantos outros fadistas, a saudade ganha forma, ecoando em versos que falam de amores impossíveis, de partidas definitivas e de um passado que insiste em permanecer presente. É uma saudade que dói, que pesa, que se arrasta como uma sombra, mas que, paradoxalmente, também é acolhida como parte da identidade portuguesa. Para eles, sentir saudade é quase um ato de resistência, uma forma de manter vivo aquilo que já não está mais ao alcance das mãos. 
 
No Brasil, por outro lado, a saudade assume um tom mais leve, embora não menos significativo. Aqui, ela está mais ligada à nostalgia, à lembrança de momentos felizes, de pessoas queridas, de lugares que marcaram a vida. É uma saudade que, embora possa trazer lágrimas aos olhos, também carrega um sorriso no canto da boca. É a saudade de uma infância vivida no interior, de uma tarde ensolarada na praia, de uma conversa ao redor da mesa com a família. Essa saudade brasileira é menos dolorosa e mais reconfortante, como um abraço caloroso que nos envolve ao lembrar de algo bom que ficou para trás. É uma saudade que não paralisa, mas que impulsiona, que nos faz querer reviver, mesmo que apenas na memória, os momentos que nos marcaram. 
 
Essa diferença de percepção da saudade entre brasileiros e portugueses pode ser explicada, em parte, pelas histórias e contextos culturais de cada país. Portugal, com sua longa tradição de navegações e descobrimentos, carrega em sua memória coletiva a dor das partidas, das despedidas sem garantias de retorno, das famílias separadas pelos oceanos. Essa experiência histórica moldou uma saudade que é quase existencial, que reflete a condição de um povo que sempre teve que lidar com a ausência. Já o Brasil, com sua cultura marcada pela alegria, pela celebração e pela resiliência, transformou a saudade em algo mais leve, mais próximo de uma doce lembrança do que de uma ferida aberta. 
 
Apesar dessas diferenças, há algo que une a saudade portuguesa e a brasileira: sua singularidade. Não há, em nenhum outro idioma ou cultura, uma palavra que capture com tanta precisão e profundidade esse sentimento. A saudade é, ao mesmo tempo, dor e consolo, ausência e presença, passado e futuro. É um sentimento que nos lembra de nossa humanidade, de nossa capacidade de amar, de nos conectar, de nos importar. Seja na melancolia do fado português ou na nostalgia calorosa do Brasil, a saudade é um traço único, um patrimônio emocional que une esses dois povos separados pelo Atlântico, mas conectados pela língua e pelo coração. 
 
No fim das contas, a saudade, seja ela portuguesa ou brasileira, é uma experiência universal em sua essência, mas única em sua expressão. É um sentimento que nos define, que nos torna quem somos, que nos lembra de onde viemos e do que realmente importa. E talvez seja exatamente isso que torna a saudade tão especial: sua capacidade de nos fazer sentir vivos, mesmo quando nos confronta com a ausência. Afinal, só sente saudade quem viveu, quem amou, quem se importou. E, nesse sentido, a saudade, em todas as suas formas, é um privilégio. 
 
* Advogado e consultor empresarial de Ribeirão Preto, mestre em Direito Internacional e Europeu pela Erasmus Universiteit (Holanda) e especialista em Direito Asiático pela Universidade Jiao Tong (Xangai) 

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