O fotógrafo Sebastião Salgado esteve no centro do Programa Roda Viva da TV Cultura recentemente. Contou-nos de seu novo projeto: uma grande exposição sobre a Amazônia para 2021. Contou-nos que tem se dedicado nos últimos anos a fotografar a maior floresta tropical do planeta e seus povos originários. Contou-nos também do apelo endereçado aos três poderes da República Federativa do Brasil para que tomem medidas urgentes e coordenadas visando a proteção das comunidades indígenas perante à covid-19. Um parêntese: dá gosto em ver o jornalismo da TV Cultura retomando seu patrimônio ético.
Sebastião Salgado e a designer gráfica Lélia Wanick Salgado, sua esposa, publicaram em diferentes jornais da Europa e do Brasil no domingo passado, 3 de maio, o manifesto “Ajude-nos a proteger os povos e indígenas da Amazônia da covid-19”. Endereçaram carta de conteúdo semelhante à Presidência da República, ao Senado e à Câmara de Deputados e ao Supremo Tribunal Federal. O Estado brasileiro está, portanto, devidamente acionado a agir. Assinaram também o apelo vários artistas e cientistas renomados.
A epidemia do novo coronavírus pode provocar uma mortalidade acentuada nas comunidades amazônicas. Manaus vem se configurando como um epicentro da doença e a movimentação de agentes de saúde entre a cidade e as aldeias é um importante fator de contágio. Há falta de testes para médicos e enfermeiros nos 34 distritos sanitários especiais indígenas (DSEIs). A situação é preocupante principalmente com os povos de recente contato. Seus organismos não possuem memória imunológica perante as “doenças de branco”, como a gripe, e por isso têm grande dificuldade em responder à uma infecção viral tão grave.
Mas a principal entrada do vírus nas comunidades indígenas é por invasões de garimpeiros, posseiros e madeireiros ilegais. O governo do sr. Jair Bolsonaro fragiliza, inibi e distorce de modo inconteste a atuação de órgãos como a Funai e o Ibama. A Instrução Normativa 9/2020 da Funai, publicada em 16 de abril passado, incentiva a invasão e a grilagem de Terras Indígenas (TIs) ainda não homologadas, mas já demarcadas. Em recente operação do Ibama realizada em três TIs do Pará para reprimir garimpos ilegais e desmatamentos, o ministro do Meio Ambiente, em flagrante desvio de finalidade, exonerou o funcionário responsável pela atitude correta segundo a legislação vigente.
A Medida Provisória 910, batizada como MP da Grilagem, começa a ganhar espaço na apertada agenda de votações do plenário da Câmara. O último substitutivo do texto permite que imóveis acima de 4 até 15 módulos fiscais possam ser regularizados por cadastro auto-declaratório, sem a necessidade de vistoria do Incra e com sobreposição do CAR (Cadastro Ambiental Rural) à TI ou a áreas historicamente ocupadas por populações ribeirinhas ou extrativistas. É um acinte! Outro aspecto nefasto desta MP é a possibilidade de regularização fundiária por posseiro que tenha desmatado ilegalmente áreas de preservação permanente (APP) e reserva legal (RL). Mesmo diante de crime ambiental, o título da terra pode ser emitido mediante um simples termo de ajustamento de conduta administrativo, sem vistoria e com preços facilitados.
Não é à toa que Sebastião Salgado vem a público por meio de um manifesto mundial pedir ajuda aos povos da Amazônia. O Brasil transborda e dá sinais de que já não consegue seguir sozinho. A cultura de nunca resolvermos os problemas e sempre empurrá-los para frente, poderá naturalizar a pandemia no país. Quando a maioria das nações estiver retornando de suas quarentenas, é provável que estaremos em casa olhando a nossa curva ainda ascendente. E assim, poderemos vir a ser um território pestilento. Um cordão sanitário poderá aprofundar de modo incalculável a crise sanitária e econômica por aqui.
Não é de hoje que se percebe uma preocupação internacional maior com o rumo deste país do que propriamente entre nós brasileiros. Neste sentido e neste momento há duas palavras em inglês que podem salvar vidas e a democracia: lockdown e impeachment.
O isolamento social, principal medida de controle dessa pandemia, tem tido adesão parcial entre nós. Sabe-se que a situação econômica e de habitação de muitas famílias dificultam a efetivação dessa prática. Mas sabe-se também que há muitos que não o fazem, por apenas atender às suas demandas individualistas. Há neste momento indígenas se dirigindo para o meio da floresta em acampamentos isolados inacessíveis para se protegerem da doença. Assim, passam a viver como seus antepassados, com menos conforto, mas gerando corpos mais fortes. O sacrifício é individual, mas o sentimento é de preservação do grupo. Outras pandemias baterão muito em breve à nossa porta. Não podemos perder culturas carregadas de sabedorias.