Por Rodrigo Fonseca, especial para o Estadão
Seis meses depois de conquistar o Kikito de melhor direção em Gramado, com o ainda inédito Aos Pedaços, exibido no Festival de Roterdã de 2020, Ruy Alexandre Guerra Coelho Pereira tem investido seu tempo, nesta pandemia, na poesia e na música, escrevendo versos, rebuscando redondilhas, espreitando métricas incomuns. Em paralelo aos marcos cinéfilos que dirigiu, como Os Fuzis (prêmio do júri em Berlim, em 1964) e Os Cafajestes (visto por cerca de 2 milhões de pagantes em 1962), ele compôs pérolas como Fado Tropical (com Chico Buarque), Esse Mundo É Meu (com Sérgio Ricardo) e Reza (com Edu Lobo).
Na 26ª edição do festival É Tudo Verdade, a maior maratona documental das Américas, sua incursão pelas narrativas da não ficção é alvo de uma retrospectiva. Dele, são exibidos os longas Os Comprometidos – Actas de um Processo de Descolonização (1984) e Mueda: Memória e Massacre (1979/80). A seção dedicada à sua obra – com o complemento de sua cinebiografia, O Homem Que Matou John Wayne, de Bruno Laet e Diogo Oliveira – inicia os festejos do 90º aniversário do cineasta, que acontece no dia 22 de agosto Os filmes podem ser vistos na plataforma Spcine Play e Sesc Digital.
“Tenho escrito roteiros neste tempo também, trabalhando com Luciana Mazzotti no projeto A Fúria, o terceiro tempo de uma trilogia que começou em Os Fuzis e seguiu com A Queda. E tenho uma produção já pré-montada, para quando a pandemia acabar, para filmar na Bahia O Tempo à Faca. Esse roteiro vai virar romance também. Mas o livro está atrasado”, diz Guerra ao Estadão, questionando a fronteira entre fato e fabulação no cinema. “Estamos todos no terreno da ficção. Se nos reportamos a uma linguagem, no ato de selecionarmos planos de um filme, não estamos traduzindo a realidade tal qual ela é. Estamos fazendo escolhas que fazem parte do ato de contar histórias. É isso o que eu gosto de fazer: contar histórias.”
Moçambicano de origem radicado no Brasil, Guerra dialogou com a literatura de múltiplas formas em sua trajetória, com sucessos como Erêndira, que ficou por meses a fio em cartaz na sala de cinema do Lincoln Center, em Nova York, apoiado no realismo perfumado de magia de Gabriel García Márquez (1927-2014). Aliás, ele adaptou o Nobel colombiano outras vezes, em A Bela Palomera (1988) e Veneno da Madrugada (2005). Mas ficou de prosa também com Carlos Heitor Cony (1926-2018) – em Quase Memória, de 2015 -, com Antonio Callado (1917-1997) – em Kuarup, indicado para a Palma de Ouro de 1989 – e com Chico Buarque – em Ópera do Malandro e Estorvo. Mas a inspiração dos filmes que o É Tudo Verdade selecionou não tem matriz literária e, sim, na própria Moçambique de sua origem. “Ninguém filmou García Márquez tanto, e tão bem, quanto o Ruy, mas o que ele vai fazer, em seus documentários, ao retornar para seu país de origem, em meio a um processo de libertação, de independência, é criar um documentário que se mistura com a fábula”, disse Amir Labaki, curador do festival.
“Quando assisti ao processo de Moçambique para se tornar independente, eu me coloquei à disposição para filmar lá. Trabalhei um ano e meio, buscando foco naquela realidade. O que fiz ali tem uma dimensão oral, em parte porque a oralidade sempre esteve no meu cinema, até como forma de driblar, com a palavra, eventuais precariedades de recursos para realizar o que pretendemos”, diz Guerra, que ministra uma masterclass no ETV nesta terça, 13, às 11h.
Em Mueda, ele reconstitui o massacre perpetrado pela administração colonial portuguesa no distrito homônimo de Moçambique, em 1960. O episódio marca uma virada na história da resistência colonial: a partir dele, conflagra-se a luta armada pela libertação do país.
Já Os Comprometidos documenta o violento julgamento de supostos colaboradores do regime colonial por um tribunal popular, liderado pelo presidente Samora Machel, em 1982. Guerra produziu 29 rolos de filme 16 mm em seis dias de filmagem quase ininterrupta. O material resultou em uma série de quarenta horas para a Televisão Experimental de Moçambique. São dois registros históricos, ambos marcados pela inquietação estética habitual do cineasta.
“Sou guiado pelo prazer do ato de criação. E o que crio, no cinema e em outras artes, não é dirigível, não é programado. Vou buscando, experimentando”, diz Guerra. “Vivemos hoje uma dificuldade extra para filmar, com a pandemia. É preciso precaução. Mas assim que isso acabar, vou a O Tempo à Faca. E seguimos.”
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.