A cidade brasileira estruturada para o automóvel é um legado dos urbanistas modernos da primeira metade do século XX. Le Corbusier, a Carta de Atenas e a cidade funcionalista são referências importantes desse período. É sobretudo na década de 50 que a urbanização finca os pés no Brasil e propaga o modelo que privilegia o sistema viário.
O resultado é o que conhecemos: demais espaços públicos desvalorizados, insuficiência de infraestrutura em bairros carentes, residências e lotes nas zonas Sul que valem barras de ouro, ar quente e poluído, trânsito caótico, paisagens monótonas, natureza fortemente alterada e controlada. Um modelo nitidamente insustentável.
O lugar para onde estamos indo com pressa é seguro e aconchegante?
Há muitos profissionais que se dedicam a estudar e propor alternativas para melhorar a qualidade socioambiental das cidades. Os gestores públicos deveriam pautar a política urbana no conhecimento científico, na participação da sociedade e na criatividade técnica e artística dos diferentes profissionais que atuam na área.
As ruas e avenidas podem exercer outras funções além daquelas de permitir o fluxo de veículos automotores. Já que são espaços privilegiados pela cultura e gestão urbanas, pode-se pensar em outros usos para o sistema viário. Para isso, será necessário transpor a ordem e o civismo, valores tão arraigados em nossa cultura. “Se esta rua, se esta rua fosse minha” (cantiga popular).
Nas ruas da liberdade cabem mais árvores, marcham mais foliões, protestam policiais, brincam marmanjos, pedalam sem-tetos, vicejam ervas medicinais, entreolham-se inimigos, rezam incrédulos e anoitecem pirilampos.
“Dorme ruazinha…É tudo escuro…/E os meus passos, quem é que pode ouví-los?/Dorme o teu sono sossegado e puro,/Com teus lampiões, com teus jardins tranquilos…” (Mário Quintana, Rua dos Cataventos)
O descanso das ruas. Em dias e horários em que o fluxo de automóveis é pequeno ou ausente, é possível destinar parte do espaço viário para diferentes atividades de lazer. A experiência das ciclofaixas é exitosa, porém tímida. Nos feriados, é possível resgatar a vitalidade das ruas e estimular o fazer ao ar livre. Ruas que são pouco utilizadas para a função de tráfego, como aquelas localizadas em bairros estritamente residenciais, podem transformar-se em espaços permanentes de recreação e de convívio social.
A democracia das ruas. As manifestações políticas essencialmente protagonizadas pelo povo ocorrem em atos e caminhadas pelas ruas e em praças públicas. Será que bater panela na sacada gourmet tem a mesma força e desejo de mudança do que sair às ruas empunhando uma cartolina com uma frase de efeito escrita a próprio punho? O Brasil abandonará cada vez mais o sofá e ganhará as ruas enquanto a política predominante for impulsionada pelo modelo escravagista que ganha matizes diferentes ao longo da nossa história.
A folia nas ruas. Quem não quer caminhar junto a uma banda de marchinhas de carnaval até a foz da alegria? No carnaval de rua tem cortejo de afoxés, troças de frevo, trios elétricos,escolas de samba, blocos e cordões, bonecões, ala ursas, maracatus, caboclinhos, bois e papangus.
Por onde andarão as serestas e serenatas?
Arborização. A calçada é uma extensão da rua. É preciso conforto para caminhar, pedalar e descansar nas calçadas. É possível ampliar o espaço para as árvores nestes locais.Espaço aéreo e subterrâneo. Os canteiros livres e as calçadas verdes devem substituir o cimento sempre que possível, permitindo o pleno enraizamento das plantas. As árvores caem facilmente porque não estão bem enraizadas. É como nós.
Ruas de fé, ruas de maratonas, ruas de beijos roubados, ruas barrocas, ruas de tantas histórias, rua de chuvas, ruas de paralelepídedos, ruas dos gatos e de tantos bichos.
Tudo isso é possível se redesenharmos e requalificarmos para inibir o automóvel. Dinheiro? É só transferir os recursos de viadutos, alças, duplicações e pontes para essas reformas.
Deixem que medrem os buracos no asfalto. Comecemos por considerá-los como revolucionários. Pacifiquem-se com as crateras. Talvez seja a partir delas que brotará uma nova cidade. Eu não mandaria ladrilhar.