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RP registra um estupro a cada 45 horas

Médico insistiu para camareira entrar no quarto alegando que era para trocar roupa de cama e tentou abusar sexualmente da vítima; acusado vai responder em liberdade após pagar fiança durante audiência de custódia (Reprodução)  

Por Adalberto Luque 

Ameaças e pedidos de estupradores: muitas vezes uma criança não sabe que a violência sexual é um crime (Pexels/Reprodução )

Moradora de uma cidade próxima a Ribeirão Preto, a jovem era estuprada por seu próprio pai desde os nove anos. O agressor era caminhoneiro e ela respirava aliviada quando ele ficava por longos períodos longe da casa da família. Mas, quando voltava das viagens, o inferno da garota voltava junto.  

 Assim foi até seus 16 anos. Ela não comentava com a mãe ou com as amigas. Guardava aquele peso para si própria. O pai controlava seu celular e avisava quando chegaria, para que ela se preparasse para ele. Tolerou até perceber que sua irmã mais nova estaria sendo igualmente importunada. Não aguentou e denunciou. 

 O homem foi preso em flagrante, antes que pudesse fugir. A mãe desconfiava dos estupros, mas nada fazia para impedir. A jovem e a irmã foram encaminhadas para acolhimento. Foram seis anos de violência velada onde, possivelmente, ela não entendia que aquilo era um crime. 

Números alarmantes 

A cidade de Ribeirão Preto tem, em 2023, o ano mais preocupante em relação ao número de casos de estupro. De janeiro a setembro, de acordo com dados da Secretaria da Segurança Pública (SSP), foram 147 casos de estupros, dos quais 41 cometidos contra mulheres e 106 contra vulneráveis (homens ou mulheres menores de 14 anos ou mulheres com deficiência intelectual ou física, temporária ou permanente, ou ainda mulheres sob efeito de drogas lícitas ou ilícitas). 

Somente em setembro, seis mulheres e outras 11 vulneráveis foram estupradas na cidade. O número apurado nos primeiros nove meses de 2023 é o maior na história da cidade, superando os números anuais desde 2001, quando a Secretaria de Segurança Pública (SSP) passou a divulgar as estatísticas. Ou seja, em apenas nove meses 2023 superou os anos anteriores. 

Um a cada 45 horas 

Luciana Temer, do Instituto Liberta, lembra que a maioria das vítimas de estupro no Brasil não é mulher, é menina   (Reprodução/Facebook)

Ribeirão Preto registrou em 2014 um estupro a cada cinco dias e meio, quando ocorreram 66 casos. Depois de 10 anos, a cidade registra um estupro a cada 45 horas. Ou seja, uma violência sexual contra mulheres ou vulneráveis ocorre em um prazo menor a dois dias. 

Em relação aos vulneráveis, a preocupação é grande em todo o País. De acordo com dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2023, publicado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, no Brasil foram registrados 73.024 casos de violência sexual, dos quais 56.820 cometidos contra vulneráveis. Do total de vulneráveis, 40.659 eram vítimas com 13 anos ou menos, correspondendo a 61,4% dos casos de estupros registrados em 2022.  

“Nunca é demais lembrar, a maioria das vítimas de estupro no Brasil não é mulher, é menina e tem entre 10 e 13 anos. Não podemos esquecer que meninos também sofrem estupro e hoje representam 14% dos casos, sendo que 43,4% deles têm entre 5 e 9 anos de idade”, analisa a advogada Luciana Temer, professora de direito na PUCSP e presidente do Instituto Liberta, uma organização que combate as violências sexuais contra crianças e adolescentes.  

De acordo com o Instituto Liberta, os crimes sexuais têm algo em comum: a invisibilidade e o fato de serem um problema estrutural da sociedade. 

O perigo mora em casa ou perto 

De acordo com o Anuário, o local onde as vítimas residem são citados em 72,2% das ocorrências registradas. Em 71,5% dos casos, o estupro é cometido por um familiar. Pais ou padrastos são agentes em 44,4% dos crimes, seguidos por avós, tios, primos, irmãos e outros familiares. 

As meninas negras são as principais vítimas de estupro de vulneráveis, com 56,8% dos registros, seguidas pelas meninas brancas em 42,3%. As meninas com menos de 13 anos são atacadas em 65% dos casos entre 06h e 18 horas, enquanto as maiores de 14 anos, em 53,3% dos registros, são violentadas entre 18h e 06 horas. 

Acolhimento 

A delegada Patrícia de Mariani Buldo revela que os policiais civis treinados para combater o crime acabam se repaginando para trabalhar na DDM, que tem um lado acolhedor ( Alfredo Risk)

A delegada Patrícia de Mariani Buldo, titular da Delegacia de Defesa da Mulher (DDM) de Ribeirão Preto, observa que, para as vítimas vulneráveis de violência sexual, muitas vezes a delegacia é seu último recurso. “Porque a vulnerável muitas vezes está dentro de casa, porque a vulnerável é menor. Acontece no âmbito doméstico. Essas são, muitas vezes, estimuladas até hoje a não denunciar”, diz. 

Sobre o aumento no número de denúncias, a delegada explica que isso não retrata necessariamente o número de casos. “Hoje em dia tem bastante campanha para que a pessoa venha falar. Na minha opinião, a divulgação faz com que se denuncie o que sempre existiu. Ocorrências em que um familiar estuprava um parente menor, onde tem até filho de avô. E ninguém denunciava nada. A mulher não aceitar certas coisas que a mãe e a avó aceitavam, causa uma reação em certos homens, acostumados com o comportamento machista. A nossa sociedade é machista, não são apenas os homens”, aduz Patrícia. 

Na DDM, a vítima de estupro é atendida por policiais civis, mas que abrem uma rede protetiva à disposição das vítimas de estupro e de violência doméstica em geral. Junto à delegacia, funciona o Centro de Apoio Técnico (CAT), com psicóloga, assistente social e tradutora de libras à disposição das vítimas. Além disso, tem a delegacia do idoso, a sala da Justiça Restaurativa e a sala lilás. Esta última idealizada para fornecer o acolhimento, com brinquedoteca à disposição das crianças e a cor lilás para demonstrar acolhimento. Se for necessário atendimento na área de saúde, o encaminhamento é feito pela própria DDM.  

Equipe da DDM de Ribeirão Preto: trabalho de acolhimento às vítimas ( Alfredo Risk)

Apesar de não funcionar presencialmente 24 horas em Ribeirão Preto, a DDM está à disposição das vítimas de forma ininterrupta. Os registros de ocorrência podem ser feitos na DDM, na Central de Polícia Judiciária (CPJ), no Centro, que funciona 24 horas por dia, onde há uma sala especialmente destinada ao atendimento da mulher. Se preferir, a vítima também pode acionar a DDM online 24 horas pelo celular. 

“Nós policiais civis somos treinados para combater o crime. Claro que a gente está se repaginando para trabalhar na DDM com esse lado acolhedor”, conclui a delegada. 

Evitar julgamentos ou causar revitimização 

Deíse Camargo Maito trabalha com violência contra a mulher há oito anos e destaca a importância na coleta de informações para que a vítima não fique revisitando a violência sofrida (Arquivo Pessoal)

Advogada e professora de direito na Universidade do Estado de Minas Gerais (UEMG), com mestrado doutorado em Ciências pela Universidade de São Paulo (USP) Ribeirão Preto, Deíse Camargo Maito trabalha com violência contra a mulher desde 2015. Para ela, seria uma análise superficial dizer que os casos aumentaram. “É um tipo de crime que é muito subnotificado. As pessoas que denunciam, que colocam essa situação para a Segurança Pública, muitas vezes superam barreiras anteriores, como estigma. Muitas vezes também as pessoas sequer consideram que aquilo que elas sofreram é uma violência”, opina Deíse, completando: “A pessoa está conseguindo identificar e dar nome à violência que sofre.” 

 A advogada defende que o acolhimento às vítimas de estupro seja feito de forma muito cuidadosa. Ela explica que, em primeiro lugar, é preciso verificar se há sinal físico da violência para coletar provas que, eventualmente, ainda possam estar no corpo da vítima. Depois proceder na coleta de informações sem que a pessoa tenha que revisitar a violência sofrida, sem julgamentos sobre o que a pessoa estava vestindo, se ela contribuiu para a violência sofrida. “Que o profissional que faz o primeiro acolhimento seja muito cuidadoso, tanto para ouvir o que a pessoa está falando, como para fazer o registro. É muito importante, justamente, para que a pessoa não tenha que ficar repetindo várias vezes como aconteceu a violência sofrida para que não aconteça a revitimização”, adianta. 

 Quanto ao estupro de vulnerável, Deíse elenca como extremamente necessário que a equipe médica e a equipe da psicologia façam o devido atendimento. “Ouvindo essa pessoa e identificando os possíveis fatores de risco, fazendo com que ela seja afastada do ambiente que eventualmente causou essa violência a ela. Quanto menor a vítima, menos ela consegue discernir que aquilo que ela sofreu é uma violência”, manifesta. 

A professora universitária, advogada e ativista defende que as escolas abordem educação sexual. “Claro, de acordo com cada idade, com estudos da psicologia e pedagogia que mostram o que pode ser abordado na educação sexual em cada idade, para que essas crianças consigam identificar o que elas sofrem como violência. Dá pra dizer que, quanto menor acriança, menor a chance de identificar aquilo que ela sofreu como violência. Menor a chance de se defender também”, manifesta Deíse. 

Ela destaca que é preciso que seja dada a visibilidade, para que as pessoas saibam identificar a violência, que é crime. “Para que as pessoas saibam o que é consentimento, quando uma pessoa está falando sim e quando está falando não para uma investida sexual. Entender que pessoas menores de 14 anos, a lei coloca que essas pessoas não podem dar o consentimento para a prática sexual. Quando há alguma prática sexual com pessoas menores de 14 anos é crime, é estupro de acordo com a Lei. É preciso que as pessoas saibam disso”, finaliza Deíse. 

 

 

 

 

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