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Revisão de Obama

REUTERS/Fabrizio Bensch
Por Antonio Gonçalves Filho

No primeiro volume do livro de memórias do ex-presidente norte-americano Barack Obama, Uma Terra Prometida, que a Companhia das Letras lançou, o prêmio Nobel da Paz de 2009 é o primeiro a reconhecer a ironia de ter assumido o cargo no dia 20 de janeiro daquele ano com os EUA em guerra. Ele passaria esse e outro mandato administrando conflitos bélicos (Iraque, Afeganistão, Líbia), completando oito anos de gestão manchado pelo sangue de seus compatriotas. Culpa é a palavra que ele mais repete na autobiografia. Obama, nunca é demais lembrar, assumiu a presidência com uma onda de falências de instituições financeiras naquela que foi a maior crise econômica desde a Grande Depressão dos anos 1930, a de 2007/2008, provocada por uma bolha imobiliária que levou à execução hipotecária milhões de lares americanos.

As demissões em massa de companhias sólidas como a Boeing e o fantasma da recessão levaram Obama a adotar a estratégia de Keynes: seu governo iria desempenhar o papel de gastador para dar um pontapé inicial na economia e depois fechar a torneira – algo como Roosevelt fez no auge da Grande Depressão, em 1933, lembra ele. Obama se empenhou em colocar dinheiro no bolso do povo por meio de incentivos – vale-alimentação, seguro-desemprego ampliado, redução nos impostos da classe média e ajuda aos Estados para não demitir. A maneira como o governo Obama lidou com a crise financeira ainda hoje desperta debates calorosos, mas, segundo ele, “é difícil contestar os resultados de nossas ações”.

Ainda assim, ele reconhece na autobiografia que deveria ter quebrado bancos e mandado para a cadeia alguns canalhas de colarinho-branco, além de ter ocupado ele mesmo Wall Street e acabado com a farra que levou milhões de americanos à bancarrota Não ter feito isso, admite Obama em seu livro de memórias, é algo que o incomoda até hoje. Um obstáculo o impediu de agir assim: Obama tinha consciência que os conservadores o teriam massacrado. Eles (Trump incluído) o viam como “um negro africano com um nome muçulmano e ideias socialistas instalado na Casa Branca, com toda a força do governo dos Estados Unidos sob seu comando”. Depois da palavra culpa, raça é a mais usada num livro de memórias em que sobram críticas a antípodas – ele chama Putin de chauvinista, comparando-o a um adolescente no Instagram “projetando uma imagem de vigor masculino”, numa passagem em que o Brasil é citado pela primeira vez – não exatamente de forma elogiosa, comparado à “economia estatal enferrujada” da Rússia.

O Brasil é citado mais duas vezes no livro, a última quando o Pentágono aguardava a ordem de Obama para tirar do caminho o ditador líbio Muammar al-Gaddafi (1942-2011) – na época, o ex-presidente estava de partida para a América Latina. Foi sua primeira visita à América do Sul. Enquanto discutia com a então presidente Dilma Rousseff, era assediado por assessores, que aguardavam o “sim” contra Gaddafi. Essa ordem foi transmitida em três palavras (“Você está autorizado”) por meio de um celular. Foi a primeira intervenção militar de sua presidência.

Enquanto isso, examinava meios de promover as relações comerciais com o Brasil. Sem modéstia, ele avalia que sua presença aqui foi importante, “em especial para os brasileiros de ascendência africana”, comparando o racismo “profundamente enraizado” no País ao dos EUA. E assume que a peregrinação ao Cristo Redentor e as preces (Obama é religioso, membro da Trinity United Church of Christ) o ajudaram a ter sucesso na campanha da Líbia.

A verdade é que a relação de Obama com o Pentágono sempre foi conflitante. Os modelos do ex-presidente, ele mesmo revela, são líderes pacifistas como Martin Luther King e o dramaturgo e dissidente checo Václav Havel, que foi presidente em dois mandatos, além do sul-africano Nelson Mandela. Difícil foi convencer os generais do Pentágono a seguir esse modelo civilizado. O presidente eleito Joe Biden, que foi seu vice, ainda ajudou a envenenar essas relações entre a Casa Branca e o Pentágono – Biden, que apoiara a invasão do Iraque anos antes, recomendava cautela sobre o Afeganistão, rejeitando pedidos de generais por mais tropas na região. Biden encostou o rosto no de Obama e disse simplesmente: “Não deixem colocar você contra a parede”.

Num momento de desconcertante franqueza, Obama confessa que teria preferido como companheiro de chapa o governador da Virginia, Tim Kaine, um dos primeiros a apoiar sua candidatura a presidente. Joe Biden não podia ser mais diferente dele, observa Obama. De comum só tinham antepassados irlandeses, ambos sapateiros, que migraram para os Estados Unidos quase na mesma época. Joe era determinado, venceu uma gagueira infantil, dois aneurismas cerebrais e superou a morte da primeira mulher e da filha pequena num acidente. Obama não tinha sua experiência e acabou aceitando as condições de Biden para ser seu vice. Biden exigiu estar presente em todas as decisões importantes que o presidente tomasse. Obama aceitou. “Joe tinha um ego que não podia ser desconsiderado”, justifica. E dinheiro.

Já Obama diz ter idealizado o Obamacare, que mudou o sistema de saúde americano em 2010, inspirado no próprio exemplo – Sasha, sua filha então com três meses, foi levada ao pronto-socorro com meningite viral. O desamparo que ele e sua mulher Michelle sentiram foi o marco zero dessa luta. As memórias de Obama incluem ainda episódios políticos – a invasão do sistema de computação da sede do partido democrata pela China durante a campanha de Obama e sua luta pelos direitos dos gays. O livro termina com a operação militar para matar o terrorista Osama Bin Laden, a primeira a que ele assistiu como presidente em tempo real.

UMA TERRA PROMETIDA

Autor: Barack Obama

Tradução: Berilo Vargas, Cássio de Arantes Leite, Denise Bottmann e Jorio Dauster

Editora: Cia. das Letras (764 págs.,R$ 79,90)

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.

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