Considerado ameaça doméstica de terrorismo nos Estados Unidos pelo potencial de incentivar violência por parte de extremistas, o movimento QAnon (sigla para “Q Anônimo”) foi adaptado ao Brasil e ganha adeptos entre radicais nacionais.
A versão brasileira da teoria da conspiração criada pela extrema-direita americana tem sido cultivada em fóruns bolsonaristas e alimenta campanhas de “fake news”.
Uma reportagem especial sobre o tema foi realizado pelo jornalista da Agência Estado, Vinícius Valfré, na segunda-feira (31), e fez com que, na terça-feira, o Facebook retirasse várias páginas do ar (ver abaixo).
São alvos das campanhas do QAnon, ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) e até estratégias sanitárias na pandemia, como o uso de máscaras de proteção e “termômetros de testa”.
Em síntese, os adeptos do QAnon acreditam que o presidente Donald Trump foi escolhido por um exército secreto para uma batalha contra governantes ocultos do mundo. É um herói patriota que aceitou enfrentar uma rede de tráfico humano e pedofilia que envolve desde políticos da esquerda, atores de Hollywood, o Vaticano e o bilionário húngaro George Soros.
A origem do movimento é obscura. Os adeptos seguem um anônimo que se identifica como “Q” para lançar mensagens cifradas em um fórum da deep web – parte da internet escondida de ferramentas de busca para preservação do anonimato.
A fonte primária da teoria jamais fez qualquer menção a Bolsonaro, mas apoiadores do presidente trataram de incluir o brasileiro entre os líderes mundiais escolhidos pelo “Q” para “salvar o mundo”.
Em abril deste ano, por exemplo, o deputado Eduardo Bolsonaro (PSL-SP), filho do presidente, postou nas redes uma foto ao lado do pai e dos irmãos comendo milho. Para adeptos do movimento QAnon, mais do que uma mera reunião de família, a imagem era uma prova de que Bolsonaro é o escolhido. Dias antes, o “Q” havia publicado a cena de uma plantação de milho. “Junte as peças do quebra-cabeça”, dizia a mensagem postada pelo perfil “Revelação Total”.
Levantamento da Agência Estado identificou que, nos últimos 12 meses, ideias do movimento foram propagadas em páginas, grupos e canais de Facebook e YouTube que, juntos, somam cerca de 1,7 milhão de seguidores ou membros. Por meio da ferramenta CrowdTangle, a pesquisa considerou apenas as publicações em português.
Os “conspiracionistas” não estão restritos ao anonimato da internet. No ato de 21 de junho, na Esplanada dos Ministérios, apoiadores de Bolsonaro levaram cartazes ostentando a letra “Q” e também “wwg1wga”, sigla que identifica o movimento e representa em inglês a frase “onde vai um vamos todos”.
Outra manifestante carregava os dizeres “Pizzagate é real”, em referência à conspiração que serviu de gatilho ao QAnon. Em 2016, trumpistas inventaram que Hillary Clinton, então adversária de Trump nas eleições americanas, e seus principais auxiliares controlavam um esquema de tráfico de crianças de dentro de uma pizzaria, em Washington. Influenciado pela farsa, um homem foi ao local e disparou uma metralhadora.
O crescimento no território americano acendeu um alerta. Relatório do FBI que veio a público em agosto de 2019 apontou que ideias como as do QAnon “muito provavelmente” cresceriam e levariam grupos e indivíduos extremistas a cometer atos criminosos ou violentos”. A agência classificou o movimento como potencial ameaça interna de terrorismo.
Ataques
Integrantes do STF são alvos recorrentes dos fóruns conspiratórios no Facebook com informações caluniosas. Publicações buscaram ligar ministros a “orgias com garotas” organizadas pelo médium conhecido como João de Deus, sustentam que a força de Trump é capaz de influenciar decisões do Supremo e insinuam que o Judiciário conspira contra Bolsonaro.
Entre as páginas que reproduzem conteúdo QAnon estão algumas que se apresentam como “Aliança com o Brasil”, “Brasil Acima de Tudo” e “Bolsonaro direitista”.
Em vídeos com “explicações” sobre a teoria é comum a defesa da “hidroxibolsonaro” no combate à covid-19. As páginas costumam ser mantidas por perfis falsos ou apócrifos.
A reportagem pediu entrevistas a quatro pessoas que são identificadas nas redes sociais como referências ao QAnon no Brasil, mas não obteve resposta. Em seus perfis, eles alegam que a “mídia mainstream” trabalha contra a “verdade secreta”.
O movimento é político, mas não só. Reportagem de junho da revista The Atlantic classificou o fenômeno como “uma nova religião”. No Brasil, o QAnon é disseminado em grupos que discutem temas esotéricos e místicos.
O psicanalista e professor da Universidade de São Paulo (USP) Christian Dunker afirma que teorias conspiratórias buscam a simplificação de fenômenos que as pessoas não conseguem explicar com o repertório que detêm. “A paranoia resolve as coisas porque ela vai dizer que existe um plano maior, um sentido. E diz indiretamente para a pessoa que ela é muito importante porque passou a saber que o mundo se divide, por exemplo, no combate entre as trevas e o bem. Esse efeito de relevância, de protagonismo, é muito tentador”, disse o psicanalista.
Facebook derruba páginas
O Facebook removeu da rede social alguns dos principais grupos e páginas que promoviam o movimento conspiratório QAnon no Brasil. As suspensões ocorreram após a reportagem do Estadão, na segunda-feira, revelar a adesão à versão tupiniquim da teoria da conspiração norte-americana.
Ao todo, a reportagem constatou que saíram do ar grupos e páginas que promoviam a conspiração e tinham, juntos, 572 mil membros ou seguidores.
Somente o maior grupo de adeptos da QAnon reunia mais de 22 mil membros. Páginas identificadas como “oficiais” e dedicadas à publicação de conteúdos agressivos ou falsos também foram encerradas.
O Facebook aceita os conteúdos conspiratórios, desde que não celebrem ou incentivem comportamentos violentos. A empresa não detalhou os motivos específicos que provocaram os banimentos, mas confirmou a ação a partir da reportagem.
“O Facebook removeu cinco Páginas e Grupos por violações de suas políticas. Reforçamos, ainda, que conteúdos associados com o movimento QAnon serão removidos quando identificadas discussões de potencial violência. Agradecemos ao Estadão por ter sinalizado os conteúdos violadores”, disse a rede social, em nota.
A empresa não informou os links atingidos. Entre as páginas que promoviam a farsa até a semana passada e agora estão indisponíveis, estão “Brasil o País Do Futuro”, “O Vetor Oculto”, “Q Anon Brasil”, “Revelação Total” e “Marcos Mendes”.
Nesses fóruns havia compartilhamento de campanhas que inventavam ameaças à vida dos que usam máscaras de proteção facial e dos que se submetem à aferição de temperatura com termômetros de infravermelho. Além disso, diversas publicações buscavam associar ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) a “orgias com garotas”.
Em 19 de agosto, o Facebook havia anunciado a remoção de 790 grupos ligados ao movimento nos Estados Unidos. As páginas brasileiras que agora foram retiradas do ar não haviam sido alcançadas pela decisão anterior. Com o impacto, extremistas passaram a reconvocar adeptos para redes no Instagram e Telegram.
YouTube atualiza política de discurso do ódio
O YouTube declarou que desde que atualizou sua política de discurso de ódio, em junho de 2019, removeu “dezenas de milhares” de vídeos relacionados ao QAnon e encerrou “centenas” de canais com conteúdo sobre o tema por violarem diretrizes de comunidade.
“Além disso, quando os usuários vêm ao YouTube e pesquisam tópicos sujeitos a desinformação, fornecemos contexto adicional e destacamos vídeos de especialistas ou fontes de notícias confiáveis.” Procurado, o Palácio do Planalto não se manifestou ao jornal O Estado de S. Paulo.