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Quem é este alferes preso, julgado, condenado e enforcado?

Joaquim José da Silva Xavier era o seu nome. Hoje é possível reconstruir sua história em muitos detalhes, tal a profusão de documentos existentes sobre o Tiradentes. Sua participação na conspiração mineira pode ser, em parte, compreendida através dos Autos da Devassa, um longo processo de inquirição para levantar as responsabilidades dos envolvidos na “traição de lesa majesta­de”. Tenho na minha estante este processo publicado pelo Senado em dez volu­mes. Neste artigo, quero lhe render homenagem, para além do que ensinamos e aprendemos na escola, pois ainda se divulga pouco sobre ele.

Durante muito tempo, foi destratado pela história oficial ou por uma histó­ria crítica sem bases documentais, e assim foi chamado de “louco” e “inocente útil” de um movimento que teria tido participação apenas da elite social à qual não teria pertencido. Essas afirmações contrariam o que encontramos nos Autos da Devassa e em outras fontes.

Ele nasceu em 1746 na fazenda do Pombal, atual município de São João del-Rei, MG. Sua família era de posses e chegou a ter 35 escravos. Seu pai pertencia à elite branca e servira como almotacé (fiscal de pesos e medidas). Aos 11 anos ficou órfão de pai e mãe e foi criado pelo tio e padrinho Sebastião Ferreira Leitão, dentista registrado e de quem aprendeu o ofício de dentista prático. Daí, o apelido de Tiradentes.

A partir dos 19 anos, já era mascate fazendo constantes viagens por todo o interior. Tomou contato com a vastidão dos sertões e pôde conhecer profun­damente as enormes potencialidades da colônia. Exercia seu ofício durante as viagens, cuidando de escravos e pessoas pobres. Provavelmente, fazia denta­duras com base de ouro e dentes artificiais de marfim ou osso de boi, numa só peça, executada demoradamente e sob modelo em gesso, o que já era possível para a sua época.

Aos 29 anos, entrou para a carreira militar, no Regimento de Cavalaria de Minas Gerais. Prestou seus serviços em diversos lugares: no Rio de Janeiro, nas forças de defesa da cidade contra ameaças de invasão estrangeira; em 1780, estava em Sete Lagoas, MG, encarregado da guarda do Registro local, porta de entrada para o Vale do São Francisco; no ano seguinte, já estava no destaca­mento do Caminho Novo, reprimindo salteadores. Recebeu missões difíceis dos governadores de Minas, tanto na área de segurança quanto de mineralogia, o que sempre cumpriu com dedicação. Durante 14 anos, nunca recebeu uma única promoção.

Entre 1786 e 1789, já envolvido na conspiração, fez uma série de viagens ao Rio de Janeiro para se dedicar a notáveis projetos de melhoramentos urbanos, principalmente de abastecimento de água potável para a população carioca. A Câmara não os aprovou, mas eles foram aproveitados, mais de um século de­pois, quando se iniciaram, em definitivo, as obras de urbanização e saneamento básico da antiga capital federal.

Em uma sessão da ópera no Rio de Janeiro em 1788, ao entrar no teatro, Tiradentes foi recebido com vaias, o que parece ter sido reação de pessoas con­trariadas por sua propaganda libertária que já havia se tornado pública e por seus projetos de mudar o sistema de abastecimento d’água existente. Em Minas, Tiradentes tinha outros apelidos: “o República”, “o Liberdade”, “o Corta-vento” e “o Gramaticão”, o que demonstra muito bem como era do conhecimento amplo sua pregação rebelde e sem medo. Uma das testemunhas da devassa, afirmou: “andava morto pra fazer um levante!”.

Dentre os livros que a devassa lhe sequestrou, um deles se encontra no Museu da Inconfidência, em Ouro Preto. Era a Coleção das Leis Constitutivas dos Estados Unidos. Ele o carregava para todo lado, pedindo que lhe tradu­zissem. Fez isso a diversas pessoas, parece que sem sucesso. Esse pedido tinha duplo interesse: tradução e envolvimento pelo tema daqueles a quem queria aliciar. O seu conhecimento dessa obra não era superficial. Ele a leu efetiva­mente, existem muitas anotações nas margens, feitas por ele ou por alguém que tivera acesso ao livro. As notas estão quase apagadas, dispersas em todo o volume, mas ainda é possível lê-las. Comentários interessantíssimos.

Nesses tempos bicudos, quando a liberdade é colocada em dúvida por fací­noras e milicianos no poder, é importante reavivar a memória de um mineiro que, literalmente, deu a vida pela Liberdade!

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