Por André Cáceres
“Eu preciso destas palavras escrita.” Assim mesmo, com “escrita” no singular, foi como o artista sergipano Arthur Bispo do Rosário eternizou a frase em um de seus mais célebres bordados. Como tantos artistas, Bispo usou a palavra como matéria-prima de suas obras em mantos que fizeram dele um dos principais nomes da arte brasileira mesmo tendo vivido meio século internado em uma instituição psiquiátrica. Talvez a relação de Bispo com as palavras, de necessidade e encantamento, seja a melhor síntese para a exposição Língua Solta, com curadoria de Fabiana Moraes e Moacir dos Anjos, que reinaugura o Museu da Língua Portuguesa em 31 de julho, quase seis anos depois do incêndio que destruiu parte do prédio da Estação da Luz.
A exposição mostra a influência da língua nas artes visuais, trazendo obras de artistas variados que usam letras, frases e palavras. “Tivemos o desafio de adequar o museu, que não tinha reserva técnica, para uma exposição com muitos objetos, mas também uma alegria de fazer essa conversa entre o que a gente entende como arte contemporânea e arte popular”, afirma a curadora Fabiana Moraes ao Estadão. “Eu tinha um desejo de mostrar a arte popular como não sendo uma arte dócil.” É essa intenção que a fez reunir nomes como Mira Schendel, Leonilson e Anna Bella Geiger e artistas populares, anônimos e até produtores de memes como o coletivo @saquinhodelixo.
Para Moacir dos Anjos, a forma como a exposição foi montada, de maneira não hierárquica, é também um aspecto engajado da mostra. “Sem desmerecer a qualidade dos artistas consagrados, essa separação entre erudito e popular, que sempre parte do campo erudito, é muito arbitrária”, acredita ele. “A língua é uma das formas principais de expressão de desejos, enunciação de danos ou injustiças e também de reclamação por direitos, reivindicação de reparações.”
Novos tempos
No hiato em que o museu ficou inativo, o mundo mudou de diversas formas que fizeram a instituição se adequar e repensar seu papel “O Museu da Língua Portuguesa não é o museu da mesóclise”, diz a diretora técnica Marília Bonas ao Estadão. Ela conta que o museu passou a dar atenção “às línguas dos imigrantes, às línguas de resistência, que só continuam a existir porque resistiram, ao português como esse espaço de disputa, muitas vezes de imposição violenta”.
Nessa realidade, a incorporação do debate sobre a linguagem não binária, que apenas engatinhava quando houve o incêndio no museu, no fim de 2015, e questões como o preconceito linguístico e a xenofobia fazem parte da ordem do dia da instituição, que busca celebrar a diversidade da língua. Isso se vê em espaços expositivos como Falares, no 3º andar, em que os mais diferentes sotaques do português são homenageados sem apelo ao exotismo.
A exposição de longa duração do museu, com curadoria de Isa Grinspum Ferraz e Hugo Barreto, também foi aprimorada. “A língua mudou, a sociedade mudou desde quando começamos a conceber o museu, em 2003”, conta Isa. “Tivemos de repensar o que manter, o que atualizar e o que trazer de novo, mas tentamos manter o espírito do museu, que é tratar da língua com uma visão social, antropológica, e não como gramática, mas como o que nos faz brasileiros.”
Para Letícia Santiago, coordenadora de Museus da Secretaria de Cultura e Economia Criativa do Estado, o Museu da Língua Portuguesa também cumpre um papel relevante para o local em que ele está instalado, próximo à região que ficou conhecida como Cracolândia. “Esperamos que o museu traga uma nova vida para essa área”, ela afirma, e lembra que, com a reinauguração, a região da Luz ganha mais um nó em uma rede cultural ampla, que conta com Pinacoteca, Sala São Paulo, Estação Pinacoteca, Museu de Arte Sacra, Casa Mário de Andrade e Museu da Energia. Além disso, ela lembra que o museu agora conta com equipamentos de prevenção a incêndios que estão até além das exigências legais do prédio, como sprinklers.
Larissa Graça, gerente de Patrimônio e Cultura da Fundação Roberto Marinho, que acompanhou toda a reconstrução do museu, destaca ainda a atenção à sustentabilidade e à acessibilidade no novo museu: “Há dez anos, entendíamos acessibilidade como acesso ao espaço físico, mas hoje pensamos na experiência que se tem depois que se entra nesse espaço”.
O secretário estadual de Cultura e Economia Criativa, Sérgio Sá Leitão, garantiu ao Estadão que a reabertura do Museu da Língua Portuguesa está sendo feita de maneira segura. “Estamos em permanente contato com o Centro de Contingência da Covid-19.” A estimativa do governo do Estado, segundo ele, “é que estamos em um período de declínio sustentável dos indicadores da pandemia, muito em função da vacinação”.
As exposições, tanto as de longa duração quanto a temporária Língua Solta, têm um caráter combativo bastante evidente. Para Sá Leitão, “o simples ato de investir num museu e realizar o restauro de um prédio histórico é um ato político” e “uma das funções de um museu como esse é questionar as visões e as expectativas prévias do público”.
Os presidentes de Portugal, Cabo Verde e Moçambique confirmaram presença no evento de reinauguração do Museu da Língua Portuguesa, em 31 de julho.
NOVIDADES
Terraço
Os visitantes terão acesso a uma área nova do prédio, um terraço com vista para a Praça da Luz. Depois da pandemia, o espaço deverá receber também um café.
Integração com a Estação da Luz
Antes, os frequentadores do local tinham de sair da Estação da Luz para acessar o museu, o que não será mais preciso.
Ênfase nas exposições temporárias
O museu, que ficou historicamente conhecido por sua mostra permanente, deve ganhar exposições temporárias com maior frequência e relevância.
Espaços expositivos
Novas áreas foram abertas ao público, com foco em conteúdos multimídia, como reprodução de sotaques distintos e de falas de grandes nomes da literatura lusófona.
Produção acadêmica
O museu ganhará um centro de referência da língua para pesquisa e produção intelectual.
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.