Por Júlia Corrêa, colaborou Adriana Moreira
Em momentos difíceis, a criatividade pode ser aliada das boas ações. No Rio Grande do Sul, é possível encontrar um exemplo disso: uma pequena editora decidiu apostar em uma iniciativa na qual a escrita é transformada também em ferramenta de apoio social. Composta por três sócias – a jornalista Carolina Rocha, a relações-públicas Maribel Lindenau e a designer Camila Provenzi -, a editora Palavra Bordada, com sede em Porto Alegre, acaba de lançar o livro Quarentenas: Textos de uma Quarentena Criativa, que, além de estimular a produção literária, contribui com uma instituição social da cidade.
“Logo no início do isolamento, começamos a ver instituições fazendo campanhas de arrecadação porque empresas cortaram verbas e as pessoas não estavam indo levar doações. Queríamos fazer algo para ajudar, mas não sabíamos como”, conta Carolina. Foi assim que, aproveitando a sua própria expertise (elas se conheceram em um MBA em Book Publishing), as três tiveram a ideia de lançar um livro que reunisse textos com reflexões ancoradas no momento.
“Optamos por um e-book porque o formato permitia uma fatia maior de destinação, pela facilidade de as pessoas comprarem o livro sem riscos de contaminação e pela agilidade de produção”, relata Carolina. Finalizada em menos de três meses e lançada esta semana, a publicação reúne crônicas e contos assinados por 41 autores.
O processo envolveu intensa divulgação e um chamamento público, a partir do qual mais de 100 produções foram submetidas à avaliação das sócias e ao olhar de um curador convidado, o escritor e professor de criação literária Robertson Frizero. Com currículo que inclui participação no júri do Prêmio Jabuti, ele contribuiu com pareceres e discussões sobre cada texto.
Quanto aos critérios de seleção, Carolina explica que, além de cumprir requisitos básicos de qualidade, os textos tinham de ser crônicas ou contos inéditos e não ultrapassar o limite de cinco páginas em uma formatação preestabelecida. Além disso, o conjunto final deveria formar um leque amplo de temas.
Ao longo das páginas, há textos que mostram, por exemplo, como a quarentena é vivenciada pelos idosos, assim como por jovens que tiveram de deixar de lado encontros marcados em aplicativos. “Tem muita gente falando sobre como é um momento de parar, olhar para si, para sua vida. Outros textos questionam se já não vínhamos nos isolando antes, pela preguiça de conviver”, detalha Carolina.
Quase 70% dos autores estão tendo um texto publicado pela primeira vez. São perfis variados, formado por pessoas que vivem por todo Brasil e também no exterior. A lista inclui engenheiro, bancária, comediante e até o militar Janderson Amaro, de 39 anos, que escreveu Dados Suspeitos com a filha Mariana Trindade, de 15 anos. “Eu sempre a incentivei a escrever”, conta ele, que vive em Canoas (RS) e também é formado em Letras. “Fizemos realmente a quatro mãos, com ideias minhas e dela. Escrevemos em três madrugadas.”
Para Valdeci Alves de Almeida, de 47 anos, ser selecionado para compor a coletânea foi um sonho realizado. Fã de autores como Fernando Sabino, Rubem Braga e Rachel de Queiroz, o cearense autodidata, que trabalha fazendo lanches em uma padaria em São Paulo, sempre sonhou com o dia que estaria em uma antologia. Ele conta que, para escrever Entrega Incomum, ele se inspirou em um casal de vizinhos idosos que, isolados, recebia do filho os mantimentos. Por causa do isolamento, ele deixava as compras na garagem e partia. “Aquilo me comoveu.”
O projeto contou ainda com colaborações como a de Jotapê Pax, artista visual responsável pela arte da capa – que, segundo as sócias, captura bem a proposta do livro de conter “várias camadas, formas e realidades”. Do mesmo modo, Nelson Kilpp e Angélica Ilacqua ficaram responsáveis, respectivamente, pela revisão e pelos dados de catalogação.
Graças ao trabalho voluntário desses profissionais e a liberação dos direitos autorais por parte dos escritores, toda verba arrecadada nas vendas será revertida ao Centro de Educação Profissional São João Calábria. Localizada na zona sul da capital gaúcha, a instituição, atuante desde 1962, oferece cursos de capacitação para jovens e assistência a grupos em situação de vulnerabilidade social, com serviços ligados ao fortalecimento de vínculos familiares e comunitários.
Com a concretização do projeto, o trecho da obra Encontro Marcado, de Fernando Sabino, escolhido como epígrafe do livro, confere ainda mais sentido à iniciativa da editora: “Fazer da interrupção um caminho novo. Fazer da queda um passo de dança, do medo uma escada, do sono uma ponte, da procura um encontro.”