Charles Mills (1916-1962), sociólogo e filósofo americano, deixou de herança para a humanidade que as grandes obras e os grandes intelectuais da história nunca abriram mão de sua reflexividade e criatividade, além de sua postura crítica diante da realidade. Defensor de uma sociologia que fosse acessível à compreensão da população, visava, com ela, que os intelectuais tomassem parte nos debates públicos de sua época. Neste contexto, entendia que “apesar de muitas vezes pensarmos a ignorância como a ausência de conhecimento – e imaginarmos que o trabalho dos educadores é para preencher essa ausência -, pode ser mais produtivo pensar em ignorância como um tipo de conhecimento (alienador), ou seja, ideias que promovem a incapacidade de reconhecer as coisas – como a diversidade de saberes locais – que poderiam ser óbvias, mas que, no entanto, são silenciadas e/ou apagadas do imaginário social pela soberania institucionalizada e o monopólio epistêmico da ciência”.
Na esteira deste modo de pensar, em que a racionalidade do mundo ocidental da atualidade não produziu a indispensável libertação do ser humano, já que as principais ideologias desenvolvidas – capitalismo e socialismo – não se mostraram aptas a prever e controlar intensos processos de mudanças sociais, a obra “Libertação, descolonização e africanização da psicologia: breve introdução à psicologia africana”, recentemente publicada pela Edufscar, afirma que uma psicologia afrocentrada ainda está por ser construída no Brasil. Por quê? Pelo fato, entre outros, de as psicologias de origem europeia ou norte-americana priorizarem a dimensão mental do ser humano enquanto a psicologia africana, na perspectiva Níger-Congo, pontuar a necessidade de se considerar, pelo menos, três dimensões, a saber, a física, a mental e a espiritual, que, uma vez coexistentes, ampliam a compreensão de estudiosos sobre o ser humano.
Avançando nesta direção, a autora ainda vai além, propondo que “A pessoa humana só pode ser entendida no contexto da comunidade à qual pertence – sendo que essa comunidade é composta pelos viventes; pelos que já morreram [antepassados]; e pelos que ainda vão nascer. A noção de comunidade é estendida. Então, em vez do enfoque no ‘eu’, no ‘ego’, o que melhor caracterizaria o sujeito seria a ideia de ‘nós’. E o ‘nós’ é essa comunidade estendida, acessada por meio do ritual”.
Proposta desafiadora de integrar todas essas configurações em um projeto de prática psicológica, a obra, que também mereceu destaque no Boletim da FAPESP desta semana, é subdividida em quatro grandes capítulos: Colonização e descolonização da psicologia; Enegrecer, africanizar, aquilombar: processos históricos, políticos e científicos; Bases filosóficas e epistemológicas da psicologia africana; e Libertação, descolonização e africanização da psicologia. No primeiro, tratando da crítica à psicologia tradicional euro-americana até o que entende por libertação da psicologia através da descolonização do pensamento e da lógica do conhecimento. No segundo, contextualizando historicamente o surgimento dos estudos africanos no mundo até os desdobramentos da psicologia negra nos EUA e no Brasil, com foco em suas limitações, diálogos e desafios. No terceiro, apresentando as bases filosóficas e epistemológicas da psicologia africana, que partem da filosofia africana até a discussão dos componentes físico, mental e espiritual da personalidade africana; No quarto, discutindo os contextos e alcances da libertação, descolonização e africanização da psicologia.
Obra de fôlego, lança luz às demandas próprias da população afrodescendente. Pontual, dá voz as culturas milenares de povos considerados não-brancos, que mantém vivas e renovadas suas tradições no século 21. Uma busca de conhecimento mais coerente e consistente das maneiras afro-brasileiras de lidar com os problemas da vida cotidiana na contemporaneidade.