A ex-presidente do Hospital de Retaguarda Francisco de Assis, Joana Cordeiro do Amaral, 70 anos, entrou com uma ação na Justiça contra a Prefeitura de Ribeirão Preto. Durante mais de 30 anos, ela encabeçou um movimento filantrópico que transformou uma área abandonada, primeiro em creche, escola e posteriormente em unidade de atendimento hospitalar. Ano passado a Prefeitura, por meio de lei, cancelou o direito de uso da propriedade. O hospital passou a ser gerido pela Fundação Santa Lydia e Joana ficou sem a entidade que fundou e cheia de dívidas, principalmente trabalhistas.
Em um documento que conta sua história e que foi anexado ao processo Joana cita que a entidade cresceu e ganhou corpo graças às doações de pessoas e empresas e algumas emendas parlamentares.
A situação financeira da entidade, porém, começou a se complicar após um convênio firmado com Prefeitura e Sistema Único de Saúde, em 2014. Nele o Poder Público se comprometeu a pagar R$ 60 mil mensais pelos serviços prestados. No entanto, os ex-administradores da entidade alegam que a Secretaria Municipal da Saúde fez uma “sub-remuneração” e utilizou-se de “instrumentos inadequados para aferição do serviço prestado”. Na prática, segundo os ex-administradores, o valor pago teria sido 10,7 vezes menor do que era remunerado pelo mesmo atendimento, para outras unidades de saúde. No processo, eles anexam documentos que entendem que comprovam essa denúncia.
Em números chegou-se a pagar R$ 82,00 de diária por cuidados aos pacientes (incluindo alimentação, cuidados médicos, acomodações e o pacote de enfermagem completo). A diária custava cerca de R$ 530,00, o que segundo Joana, comprometeu o equilíbrio financeiro da entidade, provocando atrasos de salário e dificuldades operacionais.
“O então secretário de Saúde, Sandro Scarpelini, declarou em diversas reuniões que iria realizar a suplementação de recurso do Francisco de Assis, pois, na época, ele estava arrumando as contas do Santa Lydia, pois contas de luz do Santa Lydia estavam espalhadas pela Secretaria Municipal da Saúde, e ele iria mudar o funcionamento do repasse, de tal modo que repassaria o recurso a este hospital para ele administrar seus próprios gastos. Declarou em, reuniões que, após esses ajustes, iria realizar uma suplementação de recurso ao Francisco de Assis a fim de suprir os déficits, porém, não foi feito nenhum documento escrito e formal, e a suplementação jamais chegou. A entidade porém, começou a rolar e negociar dívidas, na esperança de manter o funcionamento enquanto a Prefeitura se organizava, já que além das questões operacionais, eles alegavam falta de recurso no momento, sugerindo uma possível compensação futura. Mas o recurso jamais chegou”, disse Joana em entrevista ao Tribuna.
Em janeiro de 2016, ainda na administração da ex-prefeita Dárcy Vera, a entidade iniciou o convênio com o SUS. Joana alega que a medida foi necessária, pois a Vigilância Sanitária não tinha instrumentos para fiscalização. A entidade então não era classificada nem como casa de repouso e nem unidade hospital. Por atuação do Ministério Público, a Prefeitura foi pressionada para que a Vigilância regularizasse a entidade. Foi então que, perante ao SUS, a entidade foi categorizada como “hospital especializado”, após um convênio firmado com a Fundação Waldemar Barnsley Pessoa (ver na história da entidade disponível no site do Tribuna).
Joana salienta que antes do convênio com o SUS a entidade sobrevivia das doações da sociedade, do quadro de sócios mantenedores do telemarketing e dos diversos eventos que realizava para custear o trabalho. “Até 2014, não havia quaisquer pendências, a entidade estava em dia com fornecedores e com verbas trabalhistas. Antes do SUS a entidade ampliou significativamente suas receitas, e havia se firmado como unidade de atendimento de retaguarda hospitalar. A unidade estava qualificada e com documentos em dia, mas estava classificada pela Vigilância Sanitária como casa de repouso, e a Vigilância não concordava com essa classificação, pois havia alguns pacientes com sonda e em respiradores. Houve uma pressão da Promotoria da Infância e Juventude para o cadastramento da unidade no SUS, o que resultou na classificação da unidade como Hospital Especializado e no convênio SUS, em 2014. Como hospital especializado, as exigências da Vigilância subiram demais, e a entidade buscou acompanhar, efetuando todas as modificações necessárias, mas isso implicava em gastos muito além do que a entidade estava capacitada para atender. A Prefeitura foi notificada do déficit no custeio do serviço por meio de processo administrativo e nas diversas reuniões com membros da Secretaria Municipal da Saúde, porém não adotou nenhuma medida para resolver a questão, fosse ela o encerramento do convênio ou a suplementação do recurso”, explica a gestora.
De acordo com a direção da entidade, no entanto, mesmo após esse novo convênio, os valores dos repasses continuavam insuficientes. “O custo diário de um paciente era de cerca de R$ 300 e o repasse da Prefeitura girava em torno de R$ 82”, lembra Joana. Ela alega ainda que recursos aprovados como de emendas parlamentares dos deputados Baleia Rossi e Welson Gasparini, não foram repassados à entidade.
“Em agosto de 2018, a Prefeitura não renovou o convênio, o que provocou uma perda financeira significativa, pois perdemos mais dois outros convênios. Em junho de 2018 foram repassadas à Prefeitura recursos de verbas parlamentares. A Prefeitura segurou esses recursos até agosto, e em agosto, não renovou o convênio SUS, ficando com esses recursos em caixa. A forte perda de receitas pelo Francisco de Assis nos levou à incapacidade de honrar nossos compromissos e débitos, ocasionando a falência financeira da entidade em 2019”, completa Joana.
Fim do acordo
Sem o contrato renovado com a Prefeitura, em 2019, o Ministério Público tentou uma conciliação, mas tanto a Prefeitura, como a Fundação Santa Lydia (que recebeu os pacientes do Francisco de Assis após seu fechamento) não concordaram em assumir o passivo trabalhista.
Já em 23 de março de 2020 a Prefeitura notificou Joana para que ela deixasse a entidade “no prazo de 48 horas”. No dia seguinte, Joana foi convidada para uma reunião na Secretaria da Saúde, com mediação do Ministério Público, onde se discutiu um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC).
“As tratativas caminharam muito bem com a Secretaria da Saúde. Eu tinha a noção que o acordo estava feito. Todavia, recebi uma ligação da Secretária dos Negócios Jurídicos me dizendo que não tinham interesse no TAC e que encaminhariam um projeto de lei visando a retomada do imóvel. Mesmo diante das minhas ponderações, no sentido de que a associação possuía equipamentos e benfeitorias, ela me anunciou que era decisão tomada e partir daí eu comuniquei a diretoria e não participei mais”, confirma o promotor público Sebastião Sérgio da Silveira.
Em 25 de março de 2020, ou seja, dois dias após a notificação, e um dia após a discussão do TAC na Promotoria, a Prefeitura enviou à Câmara um projeto de lei que foi aprovado pela Casa de Vereadores, revogando a Lei Municipal de cessão da terra e retomando a área municipal cedida à entidade para o município. Joana acredita que os vereadores foram induzidos ao erro.
“Estávamos ajustando os termos do acordo, ficou marcada uma reunião para sexta. Na quarta-feira, o Prefeito Duarte Nogueira enviou um projeto de lei à Câmara, solicitando a revogação da cessão do terreno ao Francisco de Assis. Neste mesmo dia, recebemos uma ligação do vereador Marinho Sampaio, perguntando se estávamos fazendo acordo com a Prefeitura para entregar o Francisco de Assis. Nossa resposta foi positiva, mas não tínhamos noção da manobra que a Prefeitura estava executando. Foi feita a votação e a revogação. E na quinta, foi publicada no Diário Oficial do Município. E depois, a Prefeitura se recusou a assinar o acordo que estava sendo elaborado junto à Promotoria. A Prefeitura induziu a entidade e a Câmara Municipal ao erro, ensaiando um acordo que jamais ocorreu a fim de obter o apoio político necessário para revogar a cessão da terra a entidade”, salienta Joana.
Indenização financeira e compromissos
Na Justiça, Joana requer uma indenização pelos edifícios e imóveis estimados em R$ 6.573.560,00, mais R$ 870 mil pelos equipamentos, e de danos morais, tanto à pessoa jurídica, como física, no valor individual de R$ 200 mil. Além da indenização, os ex-administradores do Francisco de Assis pedem na ação, que a Prefeitura assuma o passivo trabalhista e o resgate de valores intangíveis, como a manutenção do nome da entidade; a instalação de uma placa com os nomes dos fundadores originais da entidade; uma placa com agradecimento aos principais doadores; a manutenção dos nomes das alas e que também sejam adicionados nomes de alas que haviam sido acordados com doadores importantes antes do fechamento da entidade.
Nossa reportagem entrou em contato com a Prefeitura de Ribeirão Preto questionando o motivo do projeto, se a administração havia encontrado alguma irregularidade e se houve alguma tentativa de acordo. Em nota, a Prefeitura respondeu que “está ciente da ação, bem como já manifestou defesa contrária ao pleito da autora”. “O imóvel foi retomado pela Prefeitura, uma vez que os objetivos que motivaram a concessão de uso não foram atingidos, sendo necessária tal atitude por parte da Prefeitura”, finaliza a nota.
Gestora pede a nulidade de lei aprovada
Além da Prefeitura de Ribeirão Preto, a petição que tramita na 1ª Vara da Fazenda Pública em Ribeirão, cita a Câmara Municipal de Ribeirão Preto e requer a nulidade da lei que revogou a lei de concessão de direito de uso do imóvel.
O projeto do Executivo que revogou o uso da área pelo Hospital de Retaguarda Francisco de Assis foi votada e aprovado em duas discussões no dia 24 de março de 2020, por unanimidade (25 votos favoráveis dos 27 possíveis, Adauto Marmita, Alessandro Maraca, André Trindade, Elizeu Rocha, Fabiano Guimarães, Glaucia Berenice, Igor Oliveira, Isaac Antunes, Jean Corauci, João Batista, Jorge Parada, Bertinho Scandiuzzi, Lincoln Fernandes, Luciano Mega, França, Boni, Marcos Papa, Marinho Sampaio, Maurício Vila Abranches, Orlando Pesoti, Paulinho Pereira, Renato Zucoloto e Rodrigo Simões – dois vereadores estavam ausentes, Nelson das Placas e Waldyr Villela).
O vereador Lincoln Fernandes, que era presidente da Câmara quando ocorreu a votação, informou por meio de sua assessoria que o argumento para a aprovação do projeto foi que “a autorização da concessão de 2011 era uma posse concedida; não uma transferência de propriedade. “A concessão pública de um imóvel sempre fica condicionada à realização das atividades no local. Como houve a cessação das atividades em 2018, ou seja, um descumprimento e uma interdição do local, automaticamente a Prefeitura teve que revogar a legislação. Foi necessário a Câmara aprovar”, explicou a assessoria.
Indagado se a Câmara recebeu a notificação do processo que tramita na Justiça, o presidente da Câmara, vereador Alessandro Maraca, também por meio de sua assessoria, respondeu que “a Câmara Municipal foi intimada da decisão judicial que a incluiu no polo passivo da ação mencionada. Foi também notificada a apresentar informações sobre o Processo Legislativo, o que foi prontamente atendido com a apresentação da integralidade do processo, e, paralelamente aos atos acima mencionados, foi também notificada a apresentar sua contestação quanto aos fatos narrados na inicial no prazo de 30 dias (úteis). Portanto, hoje a Câmara Municipal, através da sua Coordenadoria Jurídica, elabora sua contestação a ser apresentada no prazo legal fixado”.
Joana diz que foi humilhada
A ex-presidente do Hospital de Retaguarda Francisco de Assis, Joana Cordeiro do Amaral, 70 anos, mora em Jardinópolis. Sofre de problemas de coração e diz que foi humilhada.
“Fiz o que fiz por missão. Mas eles não quiseram negociar. Me desrespeitaram, desrespeitaram nosso trabalho e o de toda a sociedade. Iam toda semana fiscalizar se tínhamos retomado as atividades. Foi humilhante. Após a falência, fiquei dia e noite no hospital protegendo o patrimônio. Quase dois anos”.
Joana diz que foi expulsa e que o hospital quase foi deteriorado. “Mataram meu cachorro especial de guarda, tentaram entrar várias vezes, roubaram cilindros de oxigênio, teve inundação. E fiquei firme até essa notificação. Saí de lá expulsa, abaixo da linha da pobreza, na miséria. Mal consigo comprar comida e remédios. Me alimento do mínimo, e muitas vezes deixo de comer. Não consigo me tratar. Estou com dívidas de água, luz e IPTU. Pra piorar, a Prefeitura de Ribeirão, sem autorização, mudou o endereço da entidade para meu endereço residencial, e todas as contas de luz, água, correspondências e processos do hospital vem todos para meu endereço residencial, sem eu ter como solucionar. Um assédio terrível”, completa.
“A Prefeitura se apossou de todo o patrimônio construído em mais de 50 anos de trabalho intensivo e sem remuneração e me deixou com todas as dívidas. Fizeram isso de modo pensado, calculado. Eles têm equipe pra isso. Tomaram um patrimônio estimado em mais de R$ 7.4 milhões que hoje está sob administração do Santa Lydia. Ficou uma dívida estimada em R$ 5.5 milhões da entidade. Resultado de quatro anos de SUS, a serviço do município. E todas essas dívidas e causas trabalhistas agora estão recaindo sobre mim. Não tenho nem uma fração disso. Dei tudo o que eu tinha. Não consigo pagar advogado e nem me defender. Nem convênio médico. O valor dos serviços prestados a Ribeirão só na fase do hospital são de R$ 11,6 milhões. Constam nos balanços. Mas nada disso foi levado em consideração” relata.
No entanto, Joana não se sente arrependida. “Nunca me arrependerei do bem que fiz. Só quero que seja feita justiça. Só quero poder me tratar e viver o que ainda me resta de vida. Onde fica o valor profissional e humano de quem trabalhou a vida inteira gratuitamente por Ribeirão, se aqueles que deveriam nos acolher como bons pastores se transformaram em lobos?”, finaliza.
A história do Lar Francisco De Assis
(Por Joana Cordeiro do Amaral)
A história do Lar Francisco de Assis é contata em detalhes em um documento elaborado por Joana Cordeiro do Amaral, com fotos, textos e publicações. Em 1985, ela iniciou suas atividades servindo comida na Favela das Mangueiras, na região do Jardim Piratininga. Começou a recolher menores abandonados e a oferecer-lhes comida e abrigo, chegando a atender vários menores e membros da comunidade em sua própria casa. Iniciou pela Favela das Mangueiras, porém, logo começou a prestar apoio na Favela do Morro do Solar Boa Vista, na Favela do Monte Alegre, e na chamada Favela ‘da Aids’, próxima ao Horto Florestal.
Dois anos depois, ela criou, em abril de 1987, o CNPJ do Movimento Assistencial Francisco de Assis, formalizando sua atividade. Esta era uma entidade com a finalidade de cuidar e acolher menores carentes em situação de abandono. Joana, seu marido e seus quatro filhos passaram a morar na entidade, que passou a receber doações da sociedade para efetuar suas atividades. Por muitos anos, a entidade sobreviveu somente com ajuda da comunidade e apoio de voluntários, que se organizavam para ajudar nas mais variadas tarefas.
Com a ajuda da comunidade católica do Jardim Piratininga, conseguiu um mutirão para construir um barracão em um terreno baldio do Solar Boa Vista, Joana conta que o local era tomado por traficantes, e com os quais ela teve de negociar a saída deles, pagando em dinheiro, na época, R$ 2,6 mil para o traficante do ‘turno’ do dia e R$ 3,6 mil para o traficante ‘da noite’.
Com a ajuda de um mutirão da comunidade, foi realizada a construção de um barracão 40x20m para abrigar crianças e famílias da comunidade do Jardim Piratininga e das favelas circundantes, sobretudo da Favela das Mangueiras. No documento ela conta que “muitas crianças abandonadas chegavam até a entidade, encaminhadas pela Polícia Militar, pessoas da sociedade que as encontravam e conheciam o trabalho, e até abandonadas na porta da entidade, sem qualquer indício do paradeiro dos pais”.
Uma cozinha industrial para atender a demanda e uma fábrica de blocos foram construídas para reduzir custos e ampliar a estrutura, com consultório de dentista, sala de assistente social, sala de reuniões e recepção.
Ao longo de muitos anos, vários imóveis foram sendo construídos no terreno com a ajuda da comunidade. A entidade mantinha também salas de aulas, para reforço escolar e educação de jovens e adultos, com professores voluntários, tudo gratuitamente.
Com o tempo, com o estabelecimento dos conselhos tutelares e a crescente política de desinternação de menores, a entidade passou a encaminhar as crianças para suas famílias e a aumentar o atendimento em regime de creche, permitindo que as mães pobres da periferia trabalhassem durante o dia e deixassem suas crianças na entidade. Cerca de quinze mães jovens espancadas e rejeitadas chegaram a morar na entidade até encontrarem locais para morar e trabalhar. Muitas famílias necessitadas recorriam ao local, o que denotava o total abandono no qual vivia a periferia da cidade.
A mudança de creche e escola para atendimento à saúde começou no ano 2000. “Muitos doentes começaram a recorrer à entidade, mediante uma grande necessidade e o trabalho começou a ser focado em outro segmento, muito carente nesta época, que eram os doentes acamados da periferia”.
Atuando neste segmento, a entidade chegou a abrigar 60 idosos internos nessa época, com baixo grau de dependência e necessitados de cuidados de enfermagem, sobretudo de cuidadores. A entidade começou a receber pacientes de hospitais em estado crônico “sem ter para onde ir, alguns por anos e considerados até como ‘moradores’ dos hospitais, ocupando leitos de UTI e semi-intensivos”.
Em 2003 a entidade se firmou no atendimento a pacientes acamados de todas as idades, cuja complexidade foi aumentando gradativamente. A entidade implantou um sistema de Telemarketing, que possibilitou obtenção de recursos suficientes para a cobertura dos gastos, e, posteriormente, ampliou a base de doadores, permitindo o sustento seu crescimento.
Houve a necessidade de reformas para a mudança de foco do atendimento das crianças para os cuidados em saúde, deste modo, a fundadora começou a reformar algumas dependências para adaptá-las para a nova atividade.
Em 2003, a entidade assumiu novo CNJP, como “Lar Francisco de Assis – Casa de Apoio ao Acamado”, sendo que posteriormente sua razão social mudou para “Unidade de Retaguarda Hospitalar Francisco de Assis”. Sob este CNPJ, iniciou oficialmente suas atividades nos atendimentos em Saúde, acolhendo pacientes acamados das periferias de Ribeirão Preto e região.
Nos anos seguintes, a entidade continuou crescendo, sendo construído um novo prédio com duas enfermarias adultas, uma lavanderia, uma rouparia, uma nova cozinha e uma praça. Posteriormente, um doador construiu sozinho um novo bloco, com 2 enfermarias adultas, farmácia e diversas salas de apoio para ajudar a comunidade. A entidade chegou a ter 38 leitos.
No documento Joana explica que o Poder Público pouco apoiou a entidade. “[Era] mantido por doações da sociedade civil. Nesse processo todo, a ajuda financeira do poder público foi nula ou próximo disso, comparada ao apoio da sociedade, que mantinha o trabalho. Só para falarmos em termos comparativos, algumas vezes a entidade recebeu ajuda do poder público, e, quando veio, via Secretaria da Assistência Social, foi cerca de R$ 3 mil, enquanto as doações de particulares somavam cerca de R$ 900 mil, o que significava 0,3% do recurso utilizado, isso ainda considerando os poucos anos em que essa ajuda efetivamente veio para a entidade”.
A elevada burocracia dos órgãos públicos dificultava e ainda hoje dificulta o acesso a tais recursos pelo terceiro setor. O telemarketing permitiu a manutenção e expansão do trabalho, favorecendo novos contatos e apoiadores.
Em 2008, a entidade foi procurada pelo Ministério Público e pela Fundação Valdemar Barnsley Pessoa, que propuseram um projeto para investir nas entidades do terceiro setor. “Eles consultaram e consideraram diversas entidades, e a nossa foi a primeira cotada para receber os recursos.”
“Diversas propostas foram feitas para outras entidades, mas as propostas incluíam a formação de um Conselho Gestor para a entidade, composto de membros da sociedade, hospitais filantrópicos e membros da Prefeitura, e somente a nossa entidade aceitou tais termos. Desse modo, foi solicitada a elaboração de projetos para implantar melhorias e adequações. Estes foram definidos em conjunto com membros da Prefeitura, a fim de definir a necessidade da entidade. O projeto visava formalizar a criação de uma unidade de retaguarda hospitalar em Ribeirão, que tivesse apta a receber recursos do poder público e que pudesse oferecer maior apoio à rede de saúde”, explicita o documento.
Foram elaborados e aprovados projetos de reforma e ampliação junto à Fundação Waldemar Barnsley Pessoa. O projeto seguiu com fiscalização do próprio Ministério Público, para o qual todos os envolvidos tinham de emitir relatórios e pareceres.
Um problema foi detectado pela Vigilância Sanitária que tinha opiniões divergentes das dos demais membros, e argumentavam que “não existia a categoria de unidade de retaguarda”, não havia um intermediário entre um hospital e um asilo, uma unidade de atendimento de pacientes crônicos, como o Francisco de Assis.
A Vigilância sugeriu que os atendidos fossem apenas pacientes com sondas, para evitar ter de cozinhar e consequentemente a manutenção de uma cozinha dentro das normas exigidas. Foi acatada a sugestão e tentou-se novo consenso.
“Mas os debates eram longos. Mais de um ano após o início dos trabalhos, e após muitas reuniões do Conselho Gestor e divergências acerca de quais seriam as “adequações” a serem feitas na entidade, resolveu-se contratar um Grupo Técnico, composto por profissionais técnicos de diversas instituições a fim de levantar as necessidades técnicas da entidade e de se elaborar um parecer a respeito, com indicações de urgência das adequações”, cita o documento.
Foram executados, no projeto, alterações referentes nos blocos principais, de 814,40 m² (enfermarias antigas) e da pediatria (316,82 m²), totalizando 1.131,22 m² de reforma. A entidade também construiu uma casa de caseiro, que posteriormente foi convertida em setores administrativos e sala de Telemarketing, RH e contabilidade. Joana diz que vendeu uma casa que possuía em Miguelópolis para ajudar a financiar essa construção. O projeto, que custou R$ 1,75 milhão, durou até 2017.
Convênio
Em 2014, a Prefeitura firmou convênio SUS com a entidade. “Embora na época o convênio oferecesse um teto teórico de R$ 60 mil mensais, nunca pagou isso”, aponta o documento. Na prática, o convênio oferecia um nível muito baixo de remuneração (sub-remuneração) dos serviços, sendo a média mensal de 2016 a 2018 de cerca de R$ 27,8 mil. Com isso, a entidade começou a adquirir dívidas em patamares crescentes. “Havia um discurso de membros do poder público de que compensaria posteriormente esses déficits, o que nunca ocorreu”.
“O custo médio do cuidado naquela época girava em torno de R$ 300,00 diários. Porém, a diária média paga pela Prefeitura girava em torno de R$ 82,00, o que, mesmo com as doações, era insuficiente para realizar os atendimentos”.
O documento aponta ainda a falta de repasse de emendas parlamentares. “Em 2018 a unidade aprovou cerca de R$ 800 mil em emendas parlamentares. Uma delas, de R$ 200 mil seria via Secretaria Municipal da Saúde em junho de 2019, mas a Prefeitura não repassou esse valor à unidade”. “A Secretaria reteve a verba até agosto de 2019, quando era época da renovação do nosso contrato municipal junto ao SUS. Nesse período, enviamos o termo de renovação, mas eles ficaram protelando e alegando diversos detalhes, adiando a assinatura. Logo depois, em novembro, eles anunciaram que não iriam renovar nosso contrato, e, alegando falta de alguns profissionais (insuficiência de fisioterapeutas), a Prefeitura resolveu suspender o convênio”.
Em 1º de outubro de 2018, a Prefeitura, com o fim do convênio, procedeu à retirada de pacientes. “Sem os recursos do convênio, a entidade começou a rapidamente a tornar-se incapaz de pagar dívidas e compromissos assumidas devido à prestação de serviço de saúde. A diretoria tentou em vão reerguer a entidade, sem sucesso, buscando doações, apoio, tentando ainda conversar sem sucesso com a Prefeitura”.
Em 2019, mediado pelo Ministério Público, houve, sem sucesso, diversas reuniões e tratativas para que a Prefeitura assumisse a unidade, por intermédio da Fundação Santa Lydia. “No entanto, a administração do Santa Lydia não concordava em assumir os passivos da unidade. Menos ainda a Secretaria Municipal de Saúde. Foi desconsiderado totalmente o fato de que tais passivos foram assumidos pela entidade prestando serviços para a própria Prefeitura. Essa negativa gerou um impasse. A entidade possuía um grande patrimônio, e a Prefeitura intentava simplesmente absorver esse patrimônio sem arcar com nenhum ônus, e deixando todas as dívidas para a fundadora. E assim o fez”.
Segundo o documento, em 23 de março de 2020 a Prefeitura emitiu notificação para Joana deixar a entidade no prazo de 48 horas, com ameaça de fazer valer o poder de polícia municipal, se fosse necessário. “Em 24 de março de 2020, o secretário de Saúde nos chamou para tentar um acordo, a entidade se reuniu para, mediado pela promotoria da Cidadania, fazer um TAC para fazer um acordo, porém, o prefeito (Nogueira), em 25 de março de 2020, enviou para a Câmara um projeto de lei e revogou a Lei Municipal de cessão da terra, e desse modo, retomou a área municipal cedida à nossa entidade por meio da Lei 3.022, de 25 de março de 2020”.
A área havia sido cedida à entidade pela Lei Municipal 2.499 de 28 de dezembro de 2011. “Por meio da lei 3.022, a Prefeitura Municipal de Ribeirão Preto se apropriou de toda a estrutura do Hospital de Retaguarda Francisco de Assis, incluindo equipamentos da unidade (bens móveis), como arsenal de suprimentos, aparelhos de ar-condicionado, computadores, compressores de ar comprimido e vácuo, gerador de energia, rede de gases de cobre de oxigênio, ar comprimido e vácuo, dois cardioversores (desfibriladores) – um infantil e um adulto, diversos concentradores de oxigênio, respiradores, passthrough de alimentos, prateleiras, mobiliário e diversos outros itens que encontravam na unidade, além do patrimônio imóvel construído ao longo de toda existência da unidade”.
“Se considerarmos um preço atual de R$ 4 mil o m² construído para um hospital, temos que só de construção o valor seria de R$ 6.573.560,00, sendo que temos uma estimativa de R$ 870 mil de equipamentos instalados… que foram igualmente apropriados pela Prefeitura, totalizando R$ 7.443.560,00”.
No documento, Joana diz que não possui patrimônio para arcar com as dívidas do hospital, sua casa está hipotecada por empréstimos. “Tudo que fiz foi para ajudar a entidade durante cinco décadas que trabalhei naquele lugar, e tudo o que tinha eu investi na entidade, e agora passo necessidades, muitas vezes faltando o básico para sobreviver”.