Por Adalberto Luque
“Eu senti que a relevância do cidadão para a Polícia Civil é zero. Meu grau de satisfação, quando tive o notebook furtado, também foi zero”. O desabafo é do consultor de Tecnologia da Informação (T.I.) Valmir da Silva, 66 anos.
No dia 27 de janeiro de 2023 ele estacionou seu carro na Rua Thomaz Nogueira Gaia, Jardim Irajá, próximo a um lava-rápido. O notebook estava escondido e ele ficou pouco tempo pelo local. Ao voltar, encontrou o carro com o vidro do lado do passageiro quebrado e sem o computador.
Silva registrou o furto através de Boletim de Ocorrência Eletrônico. Como seu computador tinha dispositivo de localização, recebeu um possível endereço e foi à delegacia comunicar. Na Central de Polícia Judiciária (CPJ) Permanente, foi orientado a ir até a CPJ Integrada, na Avenida Independência, pois o B.O. já havia sido encaminhado para lá.
Na CPJ Integrada, uma pessoa o atendeu e disse que o delegado estava em férias e somente ele poderia receber o B.O. eletrônico e a informação do paradeiro do notebook. Dias depois Silva conseguiu nova localização. Desta vez foi até a base da Polícia Militar na Avenida Professor João Fiúsa. Foi informado que isso seria atribuição da Polícia Civil e que seria preciso mandado de busca para verificar se o notebook estaria mesmo naquele local.
“Me senti relegado a segundo plano. Sei que todo dia tem furto de celular, notebook. O que a gente imagina é que seja investigado. Hoje, um ano depois, já perdi a esperança de recuperar o equipamento”, lamenta.
Silva teve transtornos com o vidro, mas isso foi coberto pelo seguro. Já o notebook, avaliado em R$ 9 mil, foi embora e o prejuízo foi ainda maior, porque tinha um ano de trabalho armazenado. “Recuperei 50%. Naquela época não usava a nuvem. Hoje faço backup na nuvem para garantir. Mas tive que comprar outro equipamento”, conclui.
Déficit
Segundo a presidente do Sindicato dos Policiais Civis da Região de Ribeirão Preto (Sinpol), Fátima Aparecida Silva, o grande déficit de recursos humanos enfrentado pela Polícia Civil há mais de uma década, influencia diretamente no trabalho de investigação.
“O policial civil é responsável pelo colhimento de provas para a retirada do criminoso das ruas. É ele quem faz com que o autor responda processo pelo crime cometido. É o policial civil que deve atender a população. Mas fica difícil. O Sinpol fez um levantamento e constatou que, somente para a cidade de Ribeirão Preto, faltam 20 delegados, 50 investigadores e 50 escrivães. E esse número aumenta a cada dia, pois muitos policiais civis se aposentam, outros desistem da carreira e não há reposição”, avalia.
De acordo com o levantamento feito pelo Sinpol no final de 2023, as 15 cidades que integram a área da Delegacia Seccional de Ribeirão Preto contavam com 223 policiais civis, sendo 24 delegados, 54 escrivães, 72 investigadores e 68 policiais civis das demais carreiras, além de cinco funcionários administrativos.
“Esse número é insuficiente. Se considerarmos que a última portaria DGP [Delegacia Geral de Polícia] que estabeleceu o número mínimo necessário, determinava que a Seccional de Ribeirão Preto deveria ter 411 policiais civis de todas as carreiras. Estamos com um déficit de 43%, pois só temos 233”, analisa.
A portaria à qual Fátima se refere é a 105, de 12 de julho de 2013. Contudo, essa portaria foi tornada sem efeito pelo então governador Geraldo Alckmin no ano de 2016, depois que um juiz da cidade de Leme exigiu que ela fosse cumprida, sob pena de multa por descumprimento. Em vez de contratar mais policiais civis – através de concurso público, que é lento e burocrático – o governador preferiu revogar a portaria e, desde então, não há nada que regulamente o número mínimo necessário.
Inconformismo
De acordo com a presidente do Sinpol, os policiais civis estão, em sua grande maioria, inconformados com essa situação, sobretudo por não poderem atender toda a população. Ela explica que acaba sendo impossível investigar e relatar todos os crimes cometidos.
Segundo dados estatísticos publicados no site da Secretaria da Segurança Pública (SSP), relativos à cidade de Ribeirão Preto, entre janeiro e novembro de 2023, foram milhares de ocorrências para serem investigadas. A cidade registrou 32 homicídios, 54 mortes no trânsito, uma vítima de homicídio culposo, 46 tentativas de homicídio, mais de 3 mil casos de lesões corporais dolosas e culposas, inclusive de trânsito, dois latrocínios, 176 casos de estupro, 2.022 roubos e outros 367 roubos de veículos, 14 roubos de carga, 1.242 furtos de veículos e 9.013 furtos – incluindo o de Valmir Silva, do começo da reportagem. Um total de 16.107 casos, perfazendo uma média de 48 ocorrências por dia.
“Estou percorrendo as 93 cidades da área de atuação do Deinter-3 [Departamento de Polícia Judiciária do Interior]. Já visitei as cidades que pertencem às delegacias Seccionais de Franca e Ribeirão Preto, num total de 32. O salário dos policiais civis está defasado há vários anos, isso é uma realidade. Hoje o policial civil de São Paulo recebe apenas o 22º melhor salário pago a policiais civis no Brasil, à frente apenas de cinco estados. Mas, nas visitas, o que percebo é que antes de pedirem aumento salarial, os policiais civis pedem que continuemos nossa luta para trazer mais policiais civis. Estão todos exaustos, fazendo o trabalho de dois e até três policiais civis. Em alguns casos, fazem o trabalho de outras carreiras e não recebem nenhum centavo a mais por isso. Há os que acumulem mais de uma unidade policial civil”, aponta Fátima.
Produtividade
Apesar da falta de efetivo que dificultam as investigações, os resultados são surpreendentes. “Em todo o Estado, o Sinpol e as demais entidades representativas de várias cidades e da Capital estimam em 17 mil o número mínimo necessário para a Polícia Civil voltar a prestar um bom atendimento à população. Mas os resultados, mesmo diante da escassez de efetivo, surpreendem. Temos exemplos em todas as delegacias, em todas as cidades e nas especializadas. Mas para ficar somente em um exemplo, podemos citar a Delegacia de Investigações Sobre Entorpecentes [DISE/DEIC], que em 2023 apreendeu mais de 4 toneladas de drogas”, acrescenta a presidente do Sinpol.
A grande questão enfrentada é a realização dos concursos públicos. Durante vários anos, foram realizados em número muito abaixo do necessário. Além disso, é um processo longo. E, por fim, há a questão do treinamento antes que o novo policial civil possa ser integrado ao cargo. Ou seja, em curto prazo, isso é impossível de se resolver.
“Além disso, a questão salarial dificulta. O candidato espera muito tempo desde a inscrição até a conclusão da Academia de Polícia. Com um salário defasado, muitos acabam desistindo e migrando para outros concursos. Assim, além de não realizar concursos em números minimamente necessários, quando uma turma de aprovados realmente chega ao ponto de começar a trabalhar como policial civil, os que de fato assumem são em número muito menor do que os aprovados. Estamos conversando com a equipe do governador. Vemos boa vontade em dialogar. Mas é preciso haver muita vontade política. E isso o Sinpol vai seguir exigindo porque, além dos policiais civis merecerem ser tratados com dignidade, a população merece ainda mais ter um atendimento satisfatório”, conclui Fátima.
Reconhecimento e concursos
A Secretaria de Segurança Pública de São Paulo (SSP-SP) se manifestou através de nota, publicada na íntegra, a seguir.
“O reconhecimento e valorização das carreiras policiais são compromissos da atual gestão. Em junho de 2023, o governador Tarcísio de Freitas sancionou o projeto de lei de autoria do Executivo que estabelece aumento salarial de até 31% para as carreiras das forças de Segurança do Estado. Foi o maior reajuste salarial já concedido no primeiro ano da gestão.
A pasta esclarece que a recomposição e valorização do efetivo policial são prioridades da pasta, que reconhece o atual déficit da Polícia Civil, que se encontra em 34,6%, e está empenhada em implementar uma série de ações para reverter essa situação.
Neste momento, estão em andamento concursos para preenchimento de mais de 14,7 mil vagas em diversas carreiras, incluindo policiais civis, delegados de polícia, escrivães e investigadores. Essa iniciativa visa fortalecer e revitalizar os quadros, promovendo uma atuação mais eficaz e eficiente no combate à criminalidade.
A solução desse desafio ocorrerá de forma gradual, mas a pasta está comprometida com o processo de revitalização do efetivo policial. A SSP permanece atenta às necessidades das polícias, buscando constantemente estratégias e ações que contribuam para a segurança e bem-estar da sociedade.
O caso mencionado pela reportagem segue em investigação pelo 4º DP de Ribeirão Preto. A equipe policial prossegue com as diligências para esclarecimento do caso.”