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Pesquisas envolvendo seres humanos

O palestrante declara, para todos os fins e dentro das normas emanadas pelo Conselho Federal de Medicina, que não existe qualquer conflito de inte­resses em sua apresentação.

Um pouco de história – O exercício da Medicina se perde nas brumas dos tempos. Certamente tem milhares de anos e nós, médicos, como herdeiros dessa ciência/arte, temos a obrigação de dignificá-la.

Durante muito tempo os avanços no conhecimento médico foram passados verbalmente de geração para geração. Huang Ti, o “imperador amarelo”, que viveu na China em torno de 2.600 a.C., foi o autor do “Nei Ching”, o primeiro tratado médico, texto básico utilizado na China por milhares de anos. Assim, até então, não foram deixados dados confiáveis a respeito das pesquisas envol­vendo seres humanos, mas é de se esperar que elas já fossem feitas.

Pesquisas em seres humanos – A utilização de seres humanos em pesquisas médicas está presente em milhares e milhares de estudos. Inicialmente os objetos de pesquisa (e aqui o termo se justifica) eram recrutados das camadas mais vulneráveis da população, desconhecendo, sendo iludidos ou sendo forçados a participar do experimento. Escravos e castas consideradas inferiores eram ge­ralmente escolhidos. O preconceito racial e social estava claramente presente.

É bem recente a preocupação com controle adequado das pesquisas envol­vendo seres humanos, tendo a História da Medicina assistido experimentos abusivos, muitos deles brutais, realizados ao longo do desenvolvimento dos conhecimentos médicos. Vamos citar alguns exemplos.

1. Inoculação da sífilis: Em 1851, em Dublin, William Wallace desenvol­veu uma pesquisa cujo objetivo declarado era o de verificar se a sífilis secun­dária era contagiosa. Nessa linha seu primeiro experimento utilizou Durst, um menino de doze anos de idade, que sofria de dor de cabeça há alguns anos. Não tinha outras manifestações e, no geral, era bastante saudável. Eis o relato de Wallace: “(…) Como a doença exigia a permanência do menino no hospital por vários meses, e como ele não havia sofrido de sífilis no passado, eu o considerei adequado para a inoculação, que teve lugar a 6 de agosto. Foi feita uma incisão na coxa direita e foi introduzido, na ferida recente, que sangrava levemente, pus de um paciente sifilítico. (…) Mais ou menos no começo de outubro a criança desenvolveu uma erupção sifilítica típica.” (In: “Experimen­tação com seres humanos” Vieira S. & Saad Hossne W. Moderna,1987).

2. Transplante de tumor: Em Berlim, 1887, Eugene Hahn, apresentou uma pesquisa, feita com o objetivo de verificar se implantes tumorais “pegam”. Em sua justificativa para a pesquisa relata que atendeu uma paciente com câncer de mama, verificando ser impossível uma operação com sucesso e não querendo revelar à paciente, recusando operá-la, que não havia esperança de tratamento, programou o procedimento cirúrgico, para que ela tivesse a ilusão física de que a operação havia sido feita ao mesmo tempo que observaria a possível implantação do tumor. Para tanto removeu uma porção da lesão do seio doente e… o transferiu para o seio sadio! O implante teve ‘sucesso’, isto é desenvolveu-se um tumor no seio sadio. (In: “Experi­mentação com seres humanos”, Vieira S. & Saad Hossne W. Moderna,1987).

Estes são apenas dois exemplos dos numerosos procedimentos realizados em seres humanos. Algumas características chamam atenção na maioria des­ses experimentos. A primeira delas é a falta de respeito à autonomia dos doentes que, ou não eram informados do que se tratava ou eram iludidos quanto aos verdadeiros objetivos do trabalho. Como agravante os procedimentos eram realizados em pessoas mais vulneráveis em função da pobreza ou de precon­ceitos de raça ou de cor. Outra característica é a definição do experimento pela simples vontade ou bom conceito do experimentador, sem passar por nenhum tipo de controle. No entanto, a falta de respeito à autonomia do paciente não se limitou a decisões individuais, como se pode ver no exemplo abaixo:

3. “Tukesgee Study”: Esse estudo foi realizado pelo Serviço de Saúde Pública dos Estados Unidos em Macon County – Alabama, tendo como objetivo conhecer a história natural da sífilis e verificar se existem diferenças entre negros e brancos. Nesse estudo, iniciado em 1932, 408 sifilíticos foram deixados sem tratamento, enquanto 192, presumivelmente não sifilíticos, foram usados como controles. Os recrutados eram negros e pobres. Não só não foram informados que estavam sendo submetidos a um experimento como lhes foi dito que recebiam um tratamen­to especial gratuito (placebo). Em 1954 foi publicado um artigo em que os autores afirmavam que a mortalidade nos pacientes sifilíticos não tratados era maior que a dos presumivelmente não sifilíticos. Ainda assim o estudo continuou, mesmo após o advento da penicilina e a aprovação de sua clara ação nos casos de sífilis. Só foi suspenso em 1972 por denúncia de um jornalista do Washington Post.

4. Experimentos sob o nazismo: Neste período foram realizados expe­rimentos incrivelmente cruéis, tendo como objetos de pesquisa pessoas de origem não-ariana, judeus, negros e ciganos, entre outros. Os experimentos sob o nazismo representaram o clímax dos procedimentos sem normas éticas envolvendo seres humanos. Ficava claro que avanço tecnológico nem sempre significa avanço ético ou bem-estar humano.
(Continua na próxima semana)

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