Edwaldo Arantes *
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Caminho pelo Centro seguindo em passos lentos e cabeça baixa, distraído como a garimpar um passado, talvez ver surgir ao fundo da bateia a pepita da minha existência.
Rua São Sebastião que aprendi a amar, como todas as imagens cravadas de flechas a olhar o céu em desespero, não sou devoto de nada, sim da ciência, aprecio o homem, sua história, mesmo que seja ficção, talvez me faça tecer entre reminiscências São Sebastião do Paraíso, São Sebastião do Ribeirão Preto e São Sebastião do Rio de Janeiro.
A rua está diferente, minha primeira Pilsen, foi no Menegário, entrei apenas uma vez na Kopenhagen, conheci um amor platônico, apaixonado, comprei uma caixa de chocolates ornada com um laço em fita vermelha.
Ficou perdida em alguma gaveta, escondida em minha timidez, nunca mais a vi, fiquei envergonhado em entregar, ela nunca soube ou desconfiou, não era para o meu mundo.
Meus passos trôpegos sem direção, apenas ergo os olhos diante um prédio velho e carcomido, outrora imponente sede do Banco Moreira Salles, meu primeiro emprego no norte paulista.
Uma casa bancária que fazia jus a quase todo o sistema financeiro, que era mineiro, dito cunhado talvez algum capitalista desalmado com dinheiro e sem paladar, “fabricar queijos e possuir Bancos”.
Confuso entre buzinas, semáforos e relógios surge a Agência São Paulo, onde uma vez por mês com o saldo parco dos vencimentos adquirir um livro e um “Long Play”, meu primeiro Neruda nasceu lá e, também, João Gilberto, Jobim e Chico Buarque, batizados.
Depois outros foram chegando e iluminando o despertar do menino inculto e obscuro, vindo das montanhas.
Drummond, Bandeira, Maiakovski, Dostoiévski, Lorca, Sabino, Pessoa, Machado, Veríssimo, Dante, Pound, Cervantes, Tolstói, Goethe, Borges, Virginia Woolf, Saramago, Paulo Mendes Campos, Graciliano, Pedro Nava e toda uma constelação surgindo a cada salário, caminhando ao meu lado, preenchendo a ignorância dos dias e dúvidas das noites.
Adentro um dos sobreviventes, “Cafeteria Única” onde sorvi meu primeiro café em uma pequena e tenra xícara de porcelana branca, na minha infância minha mãe aproveitava os copos do extrato de tomate Elefante e os das marcas Etti e Cica, assim foi composta nossa cristaleira de vidros falsos e quebrados, imaginando os “Cristais Bohemia”.
Desço pelo calçadão, vejo maravilhado surgir o Edifício Diederichsen, art déco, 1934, o primeiro seis pavimentos do interior paulista.
No térreo a autêntica Choperia Pinguim, 1937, a primeira, a baluarte, a maioria não sabe, acreditam só existir a atual, apelidada como “Choperia Pinguim II”, 1975, não existem mais Gustavos Roxo, Ewaldos Arantes, colarinhos altos, escuros, fantásticos, intelectuais, professores, curiosos, jornalistas e amantes da boêmia, hoje o néctar etílico virou calçados.
Nosso desprezo pelo patrimônio, sabedoria e cultura onde perpetuam ditos esdrúxulos e absurdos, “quem gosta de passado é museu”.
A sábia mestra história verte lágrimas ao sentir o desprezo com que tratamos a arte, transformando em pó a essência do saber.
Confuso, atravesso em direção ao que se foi, não vejo mais ninguém, anos e anos vividos em cada detalhe, mesas com toalhas xadrez, garçons em paletós brancos e gravatas borboletas pretas, erguendo bandejas.
Tudo parece um grande baile de gala, personagens surgidos de uma noite lírica e longínqua, sessão da meia noite.
Meus olhos dividem o salão, sinto que não estou mais ali, desconhecido senhor, um estranho ao ambiente atual
Peço uma tulipa em colarinho alto, sorvo em um só gole, desapontado e envergonhado pago e vou-me embora, seria melhor partir para Pasárgada, “lá sou amigo do Rei”…
Em passos desencontrados como sapatos trocados, os pés tocam o mosaico formado pelos paralelepípedos da “Esplanada do Theatro Pedro II”, lá vi in loco, não em devaneios com esses olhos que a terra há de comer, Walmor Chagas, Hamlet, Paulo Autran, Rei Lear, Bibi Ferreira, Gota d’Água, Lucélia Santos, Vestido de Noiva.
Rompo a Praça XV de Novembro sem olhar para trás, vou despejando minhas saudades, mágoas e incertezas de um tempo que foi ontem em um camarote de descobertas, testemunha ocular das lembranças.
Não existem remorsos ou arrependimentos, não há mais tempo ou motivos, meu corpo balança como a nau em um mar revolto, apenas sinto que nada vai alterar, o melhor será sempre seguir em frente, mesmo na desilusão do que poderia ter sido.
“Nunca fui senão um vestígio e um simulacro de mim. O meu passado é tudo que não consegui ser”. Fernando Pessoa.
* Agente cultural