Por Bruno Cavalcante, especial para O Estadão
Foi por influência do crítico e teatrólogo mineiro Sábato Magaldi que a encenadora paulista Neyde Veneziano redirecionou sua pesquisa de pós-doutorado da França para a Itália no começo dos anos 2000. A artista passou um ano pesquisando o teatro do dramaturgo Dario Fo (1926-2016) num processo que rendeu a primeira publicação sobre a obra do italiano no Brasil, A Cena de Dario Fo (2008).
Especializada nas pesquisas sobre o Teatro de Revista, Veneziano se encantou por Fo ao saber de sua incursão pelo gênero. “O Sábato disse que seria a minha cara, e eu, que já tinha encenado uma obra do Dario, Arlecchino, com alunos da Unicamp, achei que ele tinha razão. Na sequência, eu descobri a relação dele com o Teatro de Revista e me animei em fazer o projeto”, conta.
Durante o período na Itália, a diretora teve a chance de conviver com o dramaturgo e trabalhar com Franca Rame, também dramaturga e principal parceira de Fo. Foi com essa bagagem que ela colocou em cena na sexta-feira, 11, O Despertar, solo estrelado por Carla Candiotto.
Escrito em 1977 com o título Il Risveglio, o texto faz parte de uma coleção de solos escritos por Fo e Rame sobre a condição feminina no século 20. A obra já ganhou diferentes montagens no Brasil estrelando nomes como Denise Stoklos, Marília Pêra, Débora Bloch e Wilson dos Santos, e agora chega à sua primeira versão online numa adaptação ainda mais brasileira.
“É uma tentativa perigosa”, alerta Veneziano. “Adaptamos a linguagem e algumas situações muito italianas dos anos 1970, e ficou tudo muito brasileiro, porque Dario sempre sugeria que devemos transformar a linguagem, de forma a dialogar com os espectadores que nos assistem”.
Pensada originalmente para narrar uma manhã na vida de uma mulher que trabalha no chão de uma fábrica e precisa levar o filho para a creche enquanto lida com o assédio e o abuso no ambiente de trabalho, o texto de O Despertar foi adaptado para uma realidade mais contemporânea. A mulher agora trabalha em uma loja popular de artigos orientais e mora na periferia de São Paulo.
Ainda retratando temas como o sexismo, o machismo e o assédio, a nova versão traz mais elementos à narrativa original, como o abuso e a violência. “Foi durante os ensaios que descobrimos que o marido a maltratava. Estava no texto, apenas reforçamos o diálogo com gestos que sugerem também uma violência doméstica”, conceitua.
“Essa mulher pode ser engraçada, mas tem uma vida muito difícil, e sofre abuso em casa. A comédia nos permite acompanhar e nos aproximar dela, e o texto revela a violência doméstica, permitindo que as mulheres se identifiquem. Acredito que a possibilidade de falar sobre esses assuntos deu mais sentido e profundidade ao espetáculo”, complementa Candiotto.
“Tenho muita afeição pelos textos da Franca. Ela é absurdamente atual, sempre corrigiu e revisou os textos do Fo, e, cá entre nós, duvido que o deixasse corrigir os seus. O casal sempre nos mostrou os problemas sociais. E essas questões pioraram. É como se tivéssemos que aumentar o volume e a intensidade. São textos atuais que devemos sempre revisitar”, diz a atriz.
Veneziano corrobora
“Do mesmo jeito que a commedia dell’arte, Molière e Shakespeare não envelheceram, a obra de Dario e Franca segue com força na atualidade porque eles tratam de assuntos universais, valorizando todos os seres humanos marginalizados, perseguidos e explorados. Dario Fo fala de sentimentos simples e muito profundos, das injustiças sociais. Todos esses temas são contemporâneos. Quanto aos monólogos de Franca, é muito claro que ainda há exploração das mulheres, assédio e violência. Tudo continua igual.”
O Despertar é a segunda obra do casal italiano a ganhar os palcos digitais – a primeira, Uma Mulher Só, com Martha Meola, estreou em 2020 -, e foi justamente esta adaptação o maior desafio desde o momento da concepção e ensaios até a gravação, no Teatro Giostri Livraria.
“Não preciso dizer que é muito difícil ensaiar uma comédia física no Zoom com a diretora em sua casa e eu na minha. Experimentamos momentos bem engraçados, demos risadas com as dificuldades. Como a Neyde é bem-humorada e engraçada, resolvemos nos divertir e tirar o melhor da situação. Claro que se tivéssemos a tecnologia do nosso lado e um público, creio que tudo seria bem diferente. Mas esta é a realidade, e acredito que temos de trabalhar em casa fazendo o melhor possível”, diz a atriz.
“Todas as pandemias, epidemias e tragédias mundiais afetaram a arte. Estamos no meio dessa transformação. Essa pandemia se deu em outro cenário, onde tudo é digital. A vida virtual não nos abandonará, vamos incorporá-la. Mas, sinceramente, não acredito que o teatro presencial possa desaparecer. Assim que for dado o sinal verde, saio correndo para uma sala de espetáculo. Quero palco, público ao vivo, luzes, nervos, mãos trêmulas, emoção, aplausos e até as vaias”, finaliza a diretora.
O Despertar cumpre temporada com transmissão no canal oficial da Veneziano Produções de 11 a 20 de junho, sexta-feira a domingo, sempre às 20 h. Os ingressos são gratuitos.
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.