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Peça ‘A pane’ mostra de forma divertida e incômoda as falhas humanas da Justiça

Foto: Ronaldo Guitierrez/ Divulgação

O escritor suíço Friedrich Dürrenmatt (1921-1990) criou uma obra que se inscreveu na longa tradição dramática e literária em que o real e a representação se confundem de forma lúdica, cômica ou mesmo sinistra – ao seu lado, é possível citar nomes como Shakespeare e Schnitzler. Assim, em A Pane, peça em cartaz no Teatro Faap, ele faz uma alegoria da Justiça como cena teatral e tira daí conclusões perturbadoras.

“De uma certa forma, o texto questiona nossa responsabilidade de escolha”, comenta Malú Bazan, que dirige um poderoso elenco masculino na montagem: Antonio Petrin, Oswaldo Mendes, Heitor Goldflus, Roberto Ascar, Cesar Baccan e Marcelo Ullmann. Juntos, eles oferecem ao espectador o drama do comerciante Alfredo Traps, cujo carro sofre uma falha mecânica durante uma viagem e o obriga a pernoitar em um vilarejo.

Como a pousada está lotada, ele recorre a um velho juiz aposentado que aluga quartos em sua casa. Durante o jantar, um verdadeiro banquete para o qual também foram convidados três outros velhos amigos do anfitrião, ao comerciante é proposto um jogo: participar como réu da encenação de um julgamento em que os quatro velhos aposentados interpretarão as suas antigas funções de juiz, promotor, advogado de defesa e carrasco.

A trama – que pode ser analisada como uma espécie de reinterpretação de O Processo, de Kafka, transformado em jogo com a benevolência da vítima – mostra que Dürrenmatt, ao escolher o título A Pane, não pensava apenas no problema mecânico de um Jaguar, mas principalmente às rachaduras e imperfeições da sociedade, em especial da Justiça e suas falhas

“Em sua época, Dürrenmatt vivia cercado pela dúvida se ainda existiam histórias a serem contadas”, comenta Malú. “Por outro lado, ele também acreditava na potencialidade da narrativa provocada pelo acaso.” Assim, uma falha mecânica leva Traps (que, em inglês, significa armadilhas) a um jogo em que octogenários juristas aposentados encenam suas antigas ocupações e, como diz o juiz anfitrião, agora não estão mais presos “a formas, protocolos, leis e todo o entulho inútil dos tribunais”. E qual seria o crime do caixeiro-viajante? Não importa: “crime é algo que sempre se pode encontrar”.

Nomes

Em seu jogo sarcástico e, por vezes, diabólico, Dürrenmatt oferece pistas ocultas para o espectador se divertir, a começar pelo nome dos personagens: além de Traps, o promotor se chama Zorn (raiva ou cólera, em alemão) e defensor é o advogado Kummer (pesar ou desgosto). “Na nossa montagem, evitamos fazer a tradução para não ficar muito evidente, muito literal, o que poderia atrapalhar”, explica a encenadora.

O texto de A Pane foi publicado originalmente como conto, em 1955 (no Brasil, há uma versão disponível em edição da editora Estação Liberdade, junto com outro texto não menos interessante, A Promessa). Em seguida, a história foi adaptada pelo autor como peça radiofônica – e depois para a televisão, teatro e cinema. Em cada uma, Dürrenmatt fez diversas modificações, com Traps vivenciando diferentes desfechos.

“Há três anos, os atores Cesar Baccan e Marcelo Ullmann me trouxeram o conto, animados com a persistência do tema”, conta Malú que, com formação no Grupo Tapa, está acostumada a montagens de um teatro mais clássico. A pandemia, como esperado, atrasou o projeto, mas não cancelou.

Decididos a montar a peça, os artistas mantiveram a narrativa do conto, mas com uma dramaturgia mais aberta, como preconiza a versão feita pelo próprio Dürrenmatt. “Apenas reduzimos um pouco o texto da peça para nos aproximarmos mais do conto, especialmente na exploração do narrador, pois queremos que a plateia se reconheça no drama de Traps.”

Jogo

A montagem, cujo texto foi traduzido por Diego Viana, preserva um dos pontos altos da obra de Dürrenmatt, que é o envolvente jogo de palavras. “É apresentada uma tese para então a peça se desenvolver”, afirma Malú, que divide a criação da cenografia com Anne Cerutti: trata-se de um tabuleiro, no qual os personagens se movimentam como peças de um jogo. “Pensamos também em uma escada que não leva a lugar nenhum, uma referência à obra do artista gráfico holandês Escher e suas explorações do infinito.”

Traps logo se vê preso nessa ratoeira imaginária, em que a situação narrada ganha ambiguidade ao ser encenada, conduzindo o espectador a uma alegoria sobre as diversas manifestações da culpa – o final, aliás, que não convém ser revelado, é prova disso.

Para trazer veracidade à narrativa, Malú percebeu que necessitaria de um elenco masculino e com experiência – metade dos atores tem mais de 70 anos. Mesmo o único papel feminino, o da empregada, é aqui encenado como um homem por Marcelo Ullmann, que também é o narrador. “Eu quis preservar esse domínio masculino para concentrar a dramaticidade”, explica a encenadora que, durante seu período no Tapa, acostumou-se a trabalhar em elencos com idades distintas.

Em nenhum momento, Malú inspirou desconfiança nos atores pelo fato de ser mulher – mas sua pouca idade, 44 anos, permitiu que os mais experientes a testassem. “Fui muito questionada, mas logo percebi que a intenção não era a de apenas me interrogar, mas porque eles queriam se atirar em cena e, para isso, precisavam confiar em mim.”

Nesse encontro de gerações (“não temos idades diferentes, mas tempos distintos de vivência no mundo”, diz Malú), uma história trágica é contada ao público que, paradoxalmente, pode rir dela

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.

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