O homem e a humanidade não se satisfazem com as cores e os sons dos seus dias. Principalmente os pintores. Alguns buscam reinventá-los, muitas vezes marcando os atos com a sua genialidade. Alguns deles reinventam seus dias, transformando-os em telas coloridas. Um desses gênios chamava-se Paulo Camargo, que nos deixou no perturbado tempo de 5 de fevereiro de 2023.
Os seus trabalhos ressuscitam os cinco mais famosos quadros do passado, que documentaram o mundo, muitas vezes já desaparecido, tal como: “Las Meninas” de Velasquez (Museu do Prado de Madrid); “O Enterro do Conde de Orgaz” de El Greco (Toledo); “A Ronda Noturna” de Rembrandt (Rijsmuseum de Amsterdã); “A Mona Lisa” de Leonardo da Vinci” (Museu do Louvre) e, “A Escola de Atenas”, de Rafael Sanzio (Museu do Vaticano).
A extraordinária vida de Paulo Camargo traz para o nosso tempo e para nossa vida a extensão intertemporal da criação artística. Paulo nasceu em Anhembi e transformou o seu mundo em telas coloridas. Faleceu em Ribeirão Preto.
Dedicou boa parte de sua existência para a atividade política. Coube a ele trazer Luiz Carlos Peres a Ribeirão Preto, quando então sofreu forte perseguição, levando-o a viver no mato. Neste ponto coincidiu com o também extraordinário Portinari, que se candidatou em duas eleições como concorrente do Partido Comunista, razão pela qual foi proibido de ingressar nos Estados Unidos quando pretendia apreciar o mural, por ele criado, instalado no prédio da ONU.
O quadro mais famoso de Paulo Camargo retrata um homem enforcado, transformado num registro artístico da execução do jornalista Wladimir Herzog durante a ditadura militar, obra que manteve endereçada para um hipotético museu.
É realmente intrigante a percepção do pintor quando retira do presente algo já superado pelos dias numa tarefa de rever os passos da caminhada da humanidade.
É relevante registrar o trabalho do filósofo parisiense Michel Foucault no seu livro “As Palavras e as Coisas”, quando dedica a terça parte de sua obra examinando a obra prima de Velasquez “Las Meninas”.
No quadro, Velasquez retrata a sua própria pessoa pintando uma tela que está de costas para o expectador, impedindo, portanto de ver o que o pintor estava retratando. Mas, ao lado da tela está a figura de Velasquez, ele mesmo, que ali está para documentar a existência de uma obra possivelmente jamais percebida. Ou para desvendar mais de um mistério.
Ao lado de Velasquez estão as meninas, uma delas filha do imperador da Espanha, e seus acompanhantes. Estão retratados postos em uma sala um tanto escura, com outros quadros na parede.
Na parede do fundo há outro quadro que reflete a hipotética luz acolhida por Velasquez para pintar o quadro posto de costas para o expectador. Se os demais quadros dependurados nas paredes da sala nada refletem e aquele do fundo é iluminado, qual a razão do mistério? O quadro iluminado não é quadro, mas sim um espelho que misteriosamente documenta o que Velasquez estava pintando naquele dia: o rei e a rainha da Espanha.
Foucault estende sua análise para, de certa forma marcada por grande firmeza, afirmar que Velasquez, com sua obra prima, demonstrou no seu passado que muitas vezes “os homens não enxergam o que estão vendo”.
Assim como as pinturas dos grandes mestres, como Velasquez, Rafael, El Greco, Rembrandt, Leonardo da Vinci, Portinari, as telas deixadas pelo nosso contemporâneo Paulo Camargo merecem conquistar a parede de um museu para que as gerações vindouras possam, ao lado do livro deixado por Foucault, aprender a enxergar o que verdadeiramente estão vendo.