Uma das mais tocantes imagens exibidas nestes tempos de coronavírus foi a do velho Papa Francisco, de batina branca esvoaçante, atravessando a gigantesca e majestosa Praça de São Pedro vazia, em direção ao altar onde rezaria pela saúde do mundo. Sob a sombra do Crucifixo da Igreja de San Marcello al Corso, que teria eliminado a peste romana de 1522, o Pontífice parece carregar o sofrimento de todos, quando eleva sua voz ao alto e clama pela misericórdia de Deus.
Pensei nesta imagem quando decidi escrever sobre a Páscoa, neste ano de pandemia e incertezas. Na tradição judaica, Páscoa é passagem, comemoração da libertação dos judeus depois do jugo dos faraós. O Pessach, que dura uma semana, relembra anualmente a fuga constante dos judeus e a necessidade de defender sua liberdade. É festa importante. A Páscoa cristã, dando continuidade a festas ancestrais que comemoravam o surgimento da primavera, relembra o sacrifício de Cristo, sua morte e sua gloriosa ressurreição. É também passagem, um renascer de cada um de nós, esta constante renovação que a esperança nos concede. Sua comemoração é festa para todos. Almoço da família, distribuição de ovos de chocolate, alegria das crianças e dos mais crescidos também.
Neste ano, nada disto ocorrerá. A comemoração será feita através dos vários aplicativos da net e a saudade matada à distância. Não teremos o sorriso encantador das crianças ao descobrirem as cestas de ovos e coelhos de chocolate escondidos. Nem a alegria do reencontro dos filhos, netos e amigos, reunidos em torno da mesa, símbolo de união familiar.
A humanidade enfrenta desafio inédito. Quem imaginaria que, num mundo de alta tecnologia e desenvolvimento, com grandes conquistas, um simples e invisível inimigo mostraria não só as suas garras, como nossa fragilidade. Recolhidos em casa, os habitantes da Terra se deparam com a ameaça de morte iminente, o que faz com que meditemos sobre a fragilidade e finitude da vida. Acompanhamos as notícias da pandemia e procuramos nos proteger deste adversário insidioso, que se apossa de nós de maneira invisível. Embora o inimigo dê preferência a se hospedar nos mais velhos, todos são passíveis do ataque. A pandemia nos igualou a todos, independentemente da raça, cor, credo, nacionalidade e fez surgir uma rede de colaboração mútua, há muito não vista.
Precisamos de cuidados e da solidariedade se quisermos sobreviver. Os grandes heróis desta pandemia são os agentes de saúde – médicos, enfermeiros, ajudantes, que estão arriscando a sua vida para preservar a nossa. E ainda cientistas e pesquisadores que, em velocidade frenética procuram remédios e vacinas. E produtores rurais que continuam despejando seu produto para que não falte abastecimento. E caminhoneiros que enfrentam as estradas para movimentar os alimentos. E a grande rede de serviços essenciais, que coloca seus colaboradores em risco para que nada nos falte.
Páscoa é passagem, renovação. Estamos atravessando um vale escuro, perigoso, cheio de armadilhas. Na Páscoa deste ano, ainda não teremos atravessado o Mar Vermelho para comemorarmos nossa liberdade. Mas esperança, vontade de vencer e cuidados não nos faltam. Sairemos desta se fizermos individual e coletivamente nossa parte. Vamos portanto comemorá-la na distância dos aplicativos mas com as festas que vibram em nossos corações.