Por Danilo Casaletti, especial para o Estadão
“O indiferente não se importa, ele só quer poder/ Fará o possível e impossível pra sobreviver/ Como um inseto pestilento em reprodução/ Fatia o bolo entre a família sem preocupação.” Quando Tico Santa Cruz postou a música Carta ao Futuro, que traz esses versos, no Facebook, em julho de 2020, viu que as mais de 100 mil visualizações em poucas horas não eram à toa. Existia ali um público do Detonautas, banda da qual ele é vocalista, que estava interessado em política e em questões sociais.
A canção é uma das faixas do recém-lançado Álbum Laranja – outros sete singles foram lançados ao longo de um ano e outras duas canções inéditas, além de uma versão acústica de Carta ao Futuro, compõem o repertório. O título é uma referência ao álbum branco dos Beatles (1968) e ao preto do Metallica (1991) e também ao caso das suspeitas de candidaturas laranjas no PSL em Minas Gerais, de 2019.
O governo de Jair Bolsonaro e seus apoiadores são alvos em algumas canções, como Kit Gay, que fala em “soldado do mito” e “guardião do Capitão”; e em Micheque, que aborda o caso das movimentações suspeitas na conta do ex-assessor do senador Flávio Bolsonaro, Fabrício Queiroz, que trariam depósitos para a primeira-dama Michelle Bolsonaro – em maio deste ano, o Supremo Tribunal Federal arquivou a investigação a pedido da Procuradoria Geral da República. Na faixa Roqueiro Reaça, a banda critica adeptos do gênero que apoiam valores autoritários
Em letras como Fique Bem e Clareiras, a banda abre para questões que refletem a fragilidade diante da pandemia, como medo e a falta de liberdade. Aliás, um outro disco da banda, já gravado, vai trazer canções de cunho mais existenciais – Álbum Laranja, pelo tema, acabou se impondo a esse lançamento.
Em entrevista por telefone ao Estadão, Tico falou sobre a opção de lançar um disco de crônicas sociais e políticas – ele prepara um livro para falar de sua atuação no ativismo político – haters, sexualidade e os caminhos do rock brasileiro.
O primeiro single do álbum foi Carta ao Futuro. Naquela altura, vocês já tinham a ideia de fazer um álbum com essa temática social e política?
Sou o compositor da banda e, com a pandemia, passei a ter uma rotina mais próxima do violão, algo muito difícil quando estou em turnê. Compus um disco inteiro, que será lançado no final deste semestre. Em julho do ano passado, fiz o Carta ao Futuro e percebi que ela tinha uma temática diferente das outras músicas que eu tinha feito, que são mais existenciais. Postei no Facebook, de madrugada, em uma versão voz e violão. Quando acordei, no outro dia, já tinha mais de 100 mil visualizações, o dobro de Fique Bem, que foi a primeira que lançamos na quarentena. Cheguei para a banda e disse que era preciso refletir. As bandas de rock do mainstream não têm abordado a questão política, ou fazem algo muito pontual. Resolvemos, então, gravar essa música para lançar. O Marcelo Sussekind, que estava produzindo o outro disco, decidiu não participar. Fizemos a produção por nossa conta. Quando lançamos Carta ao Futuro, ela bateu 500 mil visualizações no YouTube. Entendemos que existia um caminho, uma abordagem mais política e social, embora os Detonautas tenham músicas que falam sobre esses temas desde 2002
Como esse caminho foi discutido pelos integrantes da banda?
Parte da banda sempre se dispôs a falar sobre esses assuntos. A outra ficou meio receosa por conta de todas as retaliações que sofremos ao longo dos anos por questões de posicionamento político, polarizações, brigas de internet. De comum acordo, entendemos que esta música tinha uma função como crônica. Fiz uma alteração na letra original para ir ao encontro do que todos pensavam. Na primeira versão, eu me dirigia ao presidente (Jair Bolsonaro) como demônio. Troquei. Acabou funcionando até melhor
Ficaram receosos se eventualmente as rádios ou outras mídias não quisessem tocar as músicas?
Se elas não deram uma eventual visibilidade, temos o YouTube, nossas plataformas de divulgação. Dentro destas plataformas, tivemos um ótimo desempenho. O Detonautas sai maior do que entrou antes da pandemia. Ultrapassamos uma barreira histórica. Estamos, agora, em um lugar privilegiado.
Quando vocês lançaram o single Micheque, a primeira-dama, Michelle Bolsonaro, ameaçou uma retaliação. Há algum processo contra vocês?
Não. Pelo o que eu soube, houve uma ida a uma delegacia para fazer um boletim de ocorrência, mas a repercussão foi tão negativa que eles não avançaram.
O rock nasceu transgressor, marginal, e hoje você apresenta uma música como ‘Roqueiro Reaça’. O que houve?
O rock é um estilo que fala de liberdade. Ele não é ideológico do ponto de vista de esquerda ou direita. Você não precisa ser de esquerda para ser do rock. Mas ele combate, no sentido de postura, o autoritarismo, o totalitarismo e a retirada de liberdades individuais ou coletivas. Então, você pode ter gente de direita, mas que não concorde com a retirada de liberdade. O que não dá para entender é um cara que se diz conversador, que soma voz a regimes autoritários, se colocar como roqueiro.
Qual sua avaliação sobre o cenário atual do rock brasileiro?
Neste momento, até pelo o que o Brasil está passando, os artistas que não queriam se posicionar precisaram fazê-lo. O rock é um estilo de classe média. Até pelo custo. Para ter uma guitarra, uma bateria, lugar para ensaiar, você precisa de um mínimo de recursos. Isso já fica distante da realidade da periferia. O diálogo com a galera mais nova, que está ouvindo funk e rap, que fala de outros temas, está difícil. Então, sinto o rock desconectado da realidade – e bastante careta. Não há renovação. Há figuras que foram transgressoras nos anos 1980 e atualmente adotam posturas conservadoras.
Você quer dar nomes?
O Roger, do Ultraje a Rigor, por exemplo, que era um cara revolucionário, adotou uma postura conservadora e aliou força com o Bolsonaro. O Lobão, que se posicionou pelo bolsonarismo e agora se arrependeu. Por outro lado, também vimos algumas figuras que ficaram em silêncio por algum tempo se posicionarem de maneira mais contundente, como o Dinho (Ouro Preto) e o Badauí (CPM22). Se o rock brasileiro quiser continuar vivo, terá que se posicionar. A garotada de 12, 13 anos, não dialoga com o rock, que pode virar um estilo elitista e segmentado, como o blues, o jazz e a bossa nova.
Há uma cobrança nas redes sociais para que os artistas se posicionem politicamente. O que você pensa sobre isso?
Penso que não é uma obrigação se posicionar. Dentro de uma democracia cada um é livre para escolher o que fazer. Mas estamos vendo que os artistas que não falam de política estão em uma situação bastante delicada. Só que tem uma questão: política não se aprende do dia para a noite. Então, tem aqueles artistas que já têm um posicionamento e preferem não falar para não ter problemas com patrocinadores, rádios, TVs, etc. Outros estão sendo cobrados e não têm ideia do que está acontecendo e nem como abordar a questão. Porém, em um momento de crise, o artista pode colaborar com a visibilidade que ele tem dentro do debate público, principalmente quando a democracia está sob ataque. E, no contexto da pandemia, articular para que as informações cheguem às pessoas da maneira correta. A disseminação de fake news é enorme. Artistas grandes, como os sertanejos, que têm acesso a um público que muitas vezes se confunde com as informações, poderiam colaborar – se fosse do desejo deles.
Posicionar-se foi algo que você aprendeu ao longo dos anos, não só sobre política, mas sobre racismo e questões de gênero?
O racismo faz parte da minha vida desde muito cedo. Eu fui adotado por uma família que o pai era negro e a mãe branca. Meus irmãos de consideração são negros. Como branco, eu via a forma diferente com a qual eles eram tratados. Eles são de classe média alta e compartilhavam comigo de escolas e outros ambientes onde eu via nitidamente isso acontecer. Sempre estive nesse debate. As redes deram voz a pensadores e intelectuais negros como Silvio de Almeida, Djamila Ribeiro e Preto Zezé, e eu tenho me aprofundado ainda mais no tema. Sobre a questão de gênero, não é uma questão simples. Procuro estudar para poder colaborar. Já fiz lives com Helena Vieira, que é uma filósofa trans que presta orientações para empresas, para entender e interpretar as diversas formas que existem dentro da orientação sexual.
Foi uma busca pessoal também? Você postou nas redes sociais que sua sexualidade é fluida…
Isso aconteceu de forma muito peculiar. A milícia digital bolsonarista postou uma fake news de que eu teria ido ao programa do Danilo Gentili – ao qual eu nunca fui – e dito que eu tinha gênero fluido, que era andrógino, e tinha uma personalidade chamada Shana. Isso foi muito difundido, sobretudo pelo WhatsApp. Quando vi que isso estava tomando uma proporção enorme, fui ao Instagram, disse que não sabia ao certo o que era sexualidade fluida. O que eu entendi: se eu não sou uma pessoa com sexualidade reprimida, sou livre de preconceitos, que não tinha problema de assumir qualquer postura, caso essa fosse minha orientação. Depois que fui orientado que não era bem isso, que era algo como você ser heterossexual e, em determinado momento da vida, ter relações com pessoas do mesmo sexo – ou ser bissexual. Sou uma pessoa heterossexual, casado há 20 anos, tenho dois filhos, não sinto atração por homens. Mas, se em algum momento da minha vida, essa variável mudasse, eu não teria problema em assumir. Foi nesse sentido que falei.
Como você lida com os haters?
O Detonautas foi a primeira banda formada na internet, em 1997. Passamos por todas as redes. Então, lido com eles desde sempre. Sempre sofri críticas, ataques. A banda foi estigmatizada. Paguei altos preços por não equalizar direito a maneira como eu apresentava certos conteúdos, até mesmo por não ter a maturidade que tenho hoje. Enquanto os haters estão no campo da internet, tudo bem. Quando eles ultrapassaram o limite das leis, sempre reportei aos órgãos de justiça. A pressão que eles impõem a mim não faz a mínima diferença, mas sei que isso pesa para outros artistas.
Sua família foi muito atingida?
Bastante. Meus filhos, todos, de um modo geral. Enfrentamos essas questões até hoje.
Pensou em sair do Brasil?
Pensei. Mas achei melhor ficar. Fui amadurecendo e entendendo como isso funciona.
Você tem pretensões políticas?
Não, absolutamente.
No começo da pandemia, você chegou a postar que havia pensado em tirar a própria vida, algo que, segundo você também declarou, já teria ocorrido em outras ocasiões. O que houve naquele momento?
Em um cenário como a pandemia, você entra em contato com muitos sentimentos, como de luto, angústia, ansiedade, depressão. Você olha para o futuro e não sabe o que vai acontecer. Eu faço terapia desde 2004. Esse assunto é algo recorrente no meu tratamento. A intenção não é tirar a vida, é acabar com a dor daquele momento. Essa dor é transitória. Pelo meu conhecimento terapêutico, soube identificar e neutralizar esses sentimentos. O motivo dessa fala era chamar a atenção das pessoas para a importância de estar conectado com algum tratamento ou acompanhamento psicológico.
Serviço
DETONAUTAS
‘Álbum Laranja’
Disponível no streaming
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.