Por Ítalo Lo Re
Com a desaceleração da variante Ômicron e a queda no número de casos de covid-19, o Ministério da Saúde confirmou nesta quinta-feira, 3, que estuda rebaixar o status da doença no Brasil de pandemia para endemia. A depender de quais ações fossem tomadas de forma complementar, a medida poderia simbolizar pouca mudança na prática, mas comunicaria que a covid estaria em níveis controlados no País. Ocorre que não há uma padronização sobre quando os países poderiam chegar a essa conclusão do ponto de vista local, o que deixa esse tema em uma zona cinzenta. Grande parte dos especialistas vê como precoce a intenção do governo brasileiro de reclassificar a pandemia neste momento.
Recentemente, Reino Unido, França e outras nações da Europa anunciaram que, por conta da melhora nos indicadores, mudariam a classificação da covid para endemia. Na América do Sul, onde o impacto da Ômicron chegou de forma mais tardia e o pico de casos foi mais recente, também já há discussões em países nesse sentido. A Organização Mundial da Saúde (OMS), que é a responsável por decretar que a pandemia teria chegado ao fim do ponto de vista global, ainda não sinalizou mudança na forma de tratar a doença.
Um dos motivos, apontam especialistas, é que enquanto a vacinação avançou de forma rápida em países desenvolvidos, o que os motivou a alterar a classificação da covid, em parte dos países africanos, por exemplo, os índices de cobertura vacinal ficam próximos a 4%. Com a desigualdade ainda latente, menos de 60% da população mundial está vacinada com dose única ou duas doses contra o coronavírus, apontam dados da plataforma Our World in Data, ligada à Universidade de Oxford (Reino Unido).
Na prática, uma doença se torna uma pandemia quando atinge vários continentes de forma intensa. Quando uma enfermidade é classificada dessa forma, países adotam uma série de medidas específicas para combatê-la, como ocorreu a partir de 2020.
A endemia, por sua vez, seria uma doença que, embora tenha frequência acima do esperado em determinada região, convive com a população de forma contínua. Ao classificar a covid dessa maneira, um governo indica que tem meios suficientes para controlar a doença e abre brecha para eliminar uma série de medidas restritivas, como uso de máscaras, por exemplo. Especialistas apontam que, para além do quesito prático, que pode variar bastante, há efeito simbólico ao rebaixar os status da doença.
“Endemia não é algo que está fora de controle, que está sobrecarregando o sistema de saúde, que está resultando em ondas É algo mais estável, que se sabe que tem uma maneira de gerenciar”, explica a vice-presidente do Instituto Sabin, Denise Garrett. Segundo ela, a longo prazo, já se previa que o caminho do coronavírus seria se tornar endêmico, uma vez que foram desenvolvidas vacinas específicas para combatê-lo e remédios, como anticorpos monoclonais e antivirais.
“Em vários aspectos, a gente está caminhando para essa direção de endemia. Mas, quando se decreta precocemente, o que se tem – além das medidas que se toma numa pandemia, e não se toma numa endemia – é um fator mental”, destaca a epidemiologista. Ela entende que naturalmente existem países que controlaram a pandemia de uma melhor forma e que vão atingir um nível endêmico mais cedo.
A questão, reforça, é que para isso precisam ser adotados parâmetros claros para promover a mudança na classificação da covid do ponto de vista local. “Hoje, abandonar o uso de máscara em ambiente aberto, por exemplo, é justificável, mas não é, ao meu ver, o momento de abandonar em ambiente fechado. É uma evolução: o que é certo hoje não é certo daqui um mês”, diz Denise. “A gente precisa de uma estabilidade antes de tomar essas medidas.”
Para o pesquisador da Fiocruz Julio Croda, enquanto a OMS é a responsável por definir a situação pandêmica de um nível global, e faz isso com métodos específicos, cada país acaba trabalhando os indicadores de maneira diferente. “Os Estados Unidos, por exemplo, introduziram a métrica de hospitalização por 100 mil habitantes, dividiram o país todo nas diferentes regiões de saúde”, diz. É com base em métricas como essa que, reforça, locais como Reino Unido e França têm mudado a situação para endemia.
“Eles não estão decretando o fim da pandemia, e nem que a doença é endêmica. É apenas uma reclassificação local, dentro daquele contexto”, explica Croda. “Falta no Brasil um planejamento em relação a uma transição adequada. O Ministério da Saúde nunca trabalhou com indicadores, nem sequer para medidas restritivas. No fim das contas, cada Estado adota as medidas de forma independente.”
Nesse contexto, Croda aponta que seria importante estabelecer no País quais seriam os indicadores que demonstrariam uma endemicidade baixa, média e alta. Até porque, reforça, um local com as dimensões do Brasil fica bastante suscetível a distorções territoriais. “Não se pode falar globalmente no Brasil, existem diferenças regionais de cobertura, número de casos, óbitos e positividade”, diz. “A gente quer decretar o fim da pandemia por decreto, sem o planejamento necessário.”
Do ponto de vista global, a epidemiologista da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes) Ethel Maciel aponta que o mundo ainda está muito longe de ter diminuição efetiva de transmissão, adoecimento e óbito. Ela reforça que enquanto alguns países já estão aplicando a 4ª dose em larga escala, como Israel, alguns ainda sequer avançaram o esquema primário. Na Nigéria, apenas 3,8% da população recebeu duas doses ou dose única.
Além de deixar parte da população mundial desguarnecida, as diferenças na imunização abrem brechas para o surgimento de mais variantes de preocupação, o que seria ainda um outro entrave para que a covid deixe de ser classificada como pandemia. Segundo Ethel, o mundo precisaria de avanço da vacinação para acima de 80% e ter controle melhor da pandemia antes de classificar a covid como endemia. “Ainda estamos cercados de incertezas”, diz ela, que destaca a importância de acompanhar o desempenho das vacinas contra as novas cepas e de incorporar remédios para tratamento.
Do ponto de vista da classificação local da covid, Ethel ressalta que o ideal seria que os países seguissem com a finalização dos decretos nacionais de pandemia, passando para endemia, somente depois que a OMS fizesse isso. “Mas desde o início estamos vendo os países agindo de forma independente, um grande embate entre as orientações da OMS e a operacionalização nos países”, diz a epidemiologista. “Inclusive a própria iniciativa Covax (consórcio liderado pela OMS para compra e distribuição de imunizantes para nações mais pobres) foi por água abaixo praticamente porque os países foram comprando suas doses, muito mais doses que a população”, diz.
“Não há consenso hoje no mundo de quantas mortes a gente pode aceitar de covid (para rebaixar o status para endemia)”, diz Ethel. “Conceitualmente, a endemia é quando a gente tem um número de casos e de óbitos menor, ou constante, em um período de tempo e naquele local, comparado com o período anterior. São esses parâmetros que a gente precisa estabelecer.”
Enquanto isso não for feito no País, reforça a pesquisadora, seria “prematura” qualquer movimento de reclassificação da doença em território nacional. “A gente não tem nem como falar isso com mais de 700, 800 pessoas morrendo por dia”, aponta a pesquisadora. Ela destaca que é importante reduzir o número de óbitos, avançar ainda mais a cobertura vacinal, que hoje está pouco acima de 70% para duas doses ou dose única, e aumentar a aplicação de doses de reforço.
Nas redes sociais, Nésio Fernandes, secretário da Saúde do Espírito Santo e vice-presidente do Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass), reforçou que o decreto 7.616/2011 prevê condições e um rito administrativo para a declaração de uma emergência de saúde pública. “Para sua revogação devem estar cessadas as condições que o motivaram”, escreveu. “Hoje (quinta) temos 512 óbitos e 51.039 casos na média móvel de 7 dias, esses são os indicadores de ‘endemia’ de óbitos e casos esperados para o território brasileiro?”