De cada quatro pessoas que deveriam ter deixado a prisão no primeiro ano da pandemia, três foram mantidas atrás das grades por juízes no estado de São Paulo, contrariando a Recomendação 62 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), que previa liberdade provisória ou outras medidas alternativas ao cárcere como forma de reduzir os riscos de contaminação pela covid-19 e evitar a disseminação da doença no âmbito dos sistemas de justiça penal e socioeducativo.
O resultado consta no Relatório Justiça e Negacionismo: Como os Magistrados Fecharam os Olhos para a Pandemia nas Prisões, do Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD). A entidade atuou Junto à Defensoria Pública de São Paulo em um mutirão para garantir o relaxamento de prisão de centenas de pessoas de abril de 2020 a janeiro deste ano.
Neste período, reunindo informações de 448 pessoas atendidas por um grupo com 92 advogados e 11 estudantes de direito, o levantamento do IDDD revelou que mesmo as 118 pessoas soltas – 26% do total -, elas só foram contempladas após 207 pedidos de liberdade negados em instâncias anteriores. Apesar de cumprirem os requisitos descritos na resolução do CNJ, segundo apontou o instituto, os 330 pedidos restantes, que correspondem a 74% do total, tiveram a prisão mantida.
“Os resultados desse mutirão carcerário são preocupantes. O Judiciário, que buscou proteger seus membros deixando de realizar uma série de procedimentos e atos processuais presenciais, se desvencilhou da responsabilidade com a preservação das vidas de pessoas sob custódia do Estado. E isso está documentado não só nos números, mas também no conteúdo de suas determinações”, disse o criminalista Hugo Leonardo, presidente do IDDD.
Publicada em março de 2020, a recomendação do CNJ convocou magistrados a se atentarem à necessidade de redução da população carcerária nos casos de idosos, gestantes e demais grupos de risco da covid-19, além de acusados de crimes sem violência ou grave ameaça.
“A orientação [do CNJ] se deu em razão das condições insalubres das prisões do país, locais considerados de maior transmissibilidade de doenças infecciosas, dada a superlotação e impossibilidade de cumprir protocolos sanitários, a começar pelo distanciamento físico e dificuldades na circulação do ar”, divulgou o IDDD.
Outro resultado preocupante do levantamento é que, apesar de 100% dos pedidos dos advogados terem como base a recomendação 62 – ou seja, a emergência sanitária -, em mais da metade (52,5%) das concessões de liberdade, a pandemia não foi mencionada pelos magistrados. Os juízes concluíram que não havia necessidade de manter as prisões por razões que não tinham relação com a pandemia, ou seja, essas pessoas já tinham direito à concessão de liberdade mesmo que não houvesse crise sanitária.
“Se os juízes constataram a desnecessidade da prisão por motivos que não estavam relacionados à pandemia, precisamos perguntar, então, por que elas estavam presas”, disse Vivian Peres, assessora de projetos do IDDD. Segundo ela, é papel do poder Judiciário estar atento à situação processual das pessoas no cárcere, citando o artigo 316 do Código de Processo Penal, que determina a realização de revisões periódicas sobre as prisões que os juízes decretam.
O IDDD avalia que esse fenômeno tem extensão ainda desconhecida em um país com quase 760 mil pessoas presas, que provavelmente também não têm sua situação reavaliada por juízes e desembargadores individualmente.
Somente em 28% das decisões favoráveis aos réus houve menção à recomendação do CNJ, enquanto, entre as decisões que mantiveram o cárcere, 39% dos juízes mencionaram o documento. “Concluímos que a Recomendação 62 acabou sendo mais usada pelos magistrados para negar do que para conceder liberdade. A orientação foi sendo esvaziada por uma atitude negacionista que coloca em risco a vida das pessoas encarceradas”, disse Peres.
Diante dessa situação, o instituto avalia que, se em março de 2020, antes da primeira morte por covid-19 em um presídio brasileiro, a recomendação 62 do CNJ sinalizava para juristas a preocupação do órgão com a vida e a saúde das pessoas encarceradas, a prática mostrou que a orientação não tem atingido seu propósito humanitário.
Em decisão proferida por uma vara de Embu das Artes, em maio de 2020, por exemplo, o juiz que negou pedido de liberdade a um jovem de 21 anos, acusado de tráfico e preso em Centro de Detenção Provisória de Osasco, sob justificativa de que, em liberdade, ele estaria mais exposto à doença.
“Em meio à crise de saúde pública que vivenciamos, a libertação do agente poderia representar risco a sua saúde, considerando não termos notícias de presos infectados no presídio do agente”, decidiu o magistrado. Segundo dados compilados pelo IDDD, na época, a unidade apresentava taxa de contágio de mais de 25%, aproximadamente oito vezes maior que a do município em que o CDP está localizado.
“Esse diagnóstico do IDDD permite suscitar, inclusive, questões a respeito da responsabilidade do Judiciário em mortes evitáveis durante essa calamidade. É um documento que traz fortes indicativos de deturpação do papel de garantidor da lei e de direitos fundamentais por parte das autoridades”, concluiu o presidente do IDDD, Hugo Leonardo.
Monitoramento realizado pelo CNJ revela que, até 28 de julho, o sistema prisional em todo o país registrou 561 mortes por covid-19, sendo 290 servidores e 271 pessoas encarceradas. Os casos confirmados passam de 90 mil, com 24.737 servidores e 65.395 pessoas presas infectados pelo novo coronavírus.
A Secretaria de Administração Penitenciária do estado de São Paulo registrou, até hoje (10), 119 mortes de servidores e 79 de presos, totalizando 198 mortos por covid-19 dentro do sistema carcerário paulista. Os casos confirmados chegam a 4.296 servidores e 14.841 presos, passando de 19 mil pessoas no total.
Edição: Aline Leal