Por Rodrigo Fonseca, especial para o Estadão
Durante o processo para encontrar a iluminação ideal para desenhar o visual de Pacifiction, rodado em meio à paisagem do Taiti, seu realizador, o catalão Albert Serra, deu instruções ao diretor de fotografia Artur Tort para não fazer referências às cores de Paul Gauguin (1848-1903).
O pintor francês viveu um processo único de imersão nas artes plásticas naquela mesma região da Polinésia, em 1891. O que ele pintou por lá virou uma espécie de cartão-postal daquelas belezas naturais para a Europa. Essa celebração da beleza é o oposto do que Serra buscava numa trama entre o drama existencial, o thriller político, a denúncia de crimes ecológicos e uma reflexão sobre o vazio.
A partir desta quinta, 20, quando estreia nos cinemas do Brasil, o longa vai mostrar por que Benoît Magimel vem se tornando um dos mais respeitados astros europeus do momento, assim como vai provar o que fez o Cahiers du Cinéma reverenciar o cineasta espanhol de 47 anos e levá-lo ao topo de seu pódio anual.
“Quem deve mostrar o quão paradisíaco é o Taiti não são os lugares comuns da imagem, mas o som. A Polinésia Francesa explode em ruídos, cantos de pássaros, manifestações de outros animais, no movimento dos rios. São tantas camadas sonoras que preferi parte delas para gerar uma sensação de paranoia contínua e não de embevecimento”, revela. “Não é beleza natural o que busco, embora não possa negá-la. Estou buscando um conflito que pode colocar um fim a tudo aquilo, ao falar da exploração atômica”, acrescenta.
CONSCIÊNCIA
Um assunto desses “não pede idílio, pede imersão na consciência, sobretudo a de um personagem tão complexo quanto o de Benoît”, disse Serra ao Estadão em entrevista no Festival de San Sebastián, em setembro. “Queria mostrar um estado de alerta em que um grupo de pessoas de poder se encontra.”
Em janeiro, o Estadão voltou a encontrar Serra – em Paris, no fórum Rendez-Vous Avec Le Cinéma Français, onde ele foi buscar recursos para seu atual projeto, Afternoons of Solitude, sobre a bestialidade das touradas espanholas. “Sou espanhol, carrego comigo questões culturais do meu país, mas não sou exatamente um reflexo do que as artes audiovisuais do meu país produzem hoje – até por financiar muitas das minhas produções na França”, explica o diretor. “Meu olhar está sempre atento a figuras que quebrem normas, mas que estejam alquebradas.”
Em Pacifiction, ele navega pelo Taiti acompanhando as crises de consciência, de tédio e mesmo de paixão vividas por De Roller (Magimel), alto funcionário do governo francês, com status de diplomata. Calculista, de educação impecável, ele é capaz de trafegar tanto pelos círculos mais ricos e abastados do Taiti, onde estão turistas milionários, quanto por locais de má fama (e mesmo de perigo), onde explora as atrações sexuais legalmente condenadas. Sua rotina muda quando um boato começa a circular: a presença de um submarino cuja presença fantasmagórica simboliza o retorno dos testes nucleares franceses.
“Não trouxe com Benoît um olhar sobre ‘o bom selvagem’, numa relação que explore a pobreza e seja fetiche do exotismo. Rousseau não teria muita vez naquele mundo se quisesse propor um tratado sociológico da relação entre aquelas populações e a natureza”, diz o cineasta. “O desafio aqui era sobretudo formal, de propor imagens inéditas na representação daquele mundo, livrando-o de clichês turísticos. Na dramaturgia que construímos, nem De Roller sabe quem é que manda naquele universo. Trabalhei na montagem para propor uma distensão de tempo, contrariando ditames de mercado do cinema. Queria valorizar um sentimento de descoberta de um homem que parecia ter perdido a fé, a esperança, a alegria. O princípio da incerteza era trunfo ali. Sempre é.”
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.