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Outro olhar para Odete Roitman  

Lucius de Mello * 
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Ver Odete Roitman mais perto da terra vermelha do Paraná do que dos salões elegantes de Paris parece incoerente com a imagem que a vilã deixou na lembrança dos brasileiros. Porém, essa “contradição” é legítima porque foi causada pela própria Beatriz Segall, atriz que deu vida à personagem criada por Gilberto Braga em 1988 e que até a sua morte, em 2018, nunca mais se livrou dela, carregando a malvada nas costas por cada pedacinho do Brasil e do mundo onde fosse reconhecida pelos fãs. Impossível olhar para madame Segall sem avistar Odete Roitman. Por essa razão, a imagem da megera ressurge sempre, mesmo quando sua intérprete empresta sua voz e o seu talento para fazer uma boa ação, como, por exemplo, um ato voluntário a favor das minorias e dos excluídos.  
 
Refiro-me ao episódio em que Beatriz chamou nossa atenção para a crise global dos refugiados — um dos maiores desafios contemporâneos dos líderes mundiais. Segundo a ONU, nos primeiros meses deste ano, o número de pessoas forçadas a se deslocar de seus países — para fugir de conflitos armados, violação de direitos humanos, perseguições e fome — chegou a 139 milhões, provenientes sobretudo da África e da Ásia, e especificamente de regiões como a Faixa de Gaza e o Oriente Médio como um todo, para citar alguns dos palcos geográficos desse problema. Um verdadeiro caos planetário que teve na Segunda Guerra Mundial um dos seus momentos mais sombrios.  
 
“O nazismo foi uma coisa tão extraordinariamente trágica, que você não pode deixar de se manifestar sempre que surge uma oportunidade. Porque você tem que lembrar para as pessoas que é a História que faz o tempo, agora. O que aconteceu é o que nos faz ter em mente o que poderá vir a acontecer. Eu acho que todas as vezes que há a possiblidade de você falar disso, acho que é importante”. Esse discurso comprometido com o combate ao antissemitismo e preocupado com o futuro da humanidade foi proferido por Beatriz Segall quando, com quase 91 anos, ela participou da leitura de fragmentos do meu livro A Travessia da Terra Vermelha – uma saga dos refugiados judeus no Brasil (Companhia Editora Nacional). Romance baseado em documentos, fotografias, cartas, entrevistas e depoimentos. A narrativa resgata a história dos refugiados judeus alemães salvos do horror nazista pela construção da ferrovia brasileira que ligava São Paulo à Londrina, no Paraná. Ainda na Alemanha, as famílias judias compravam trilhos para os construtores da estrada de ferro e em troca recebiam grandes fazendas no Brasil. Desta forma, conseguiram recomeçar a vida na zona rural de Rolândia onde a terra vermelha devido à decomposição de rochas balsâmicas e lavas vulcânicas. O grupo de sobreviventes era composto, principalmente, por intelectuais que não tinham nada a ver com terras, e que gostavam mesmo de frequentar teatros, museus e bibliotecas. Não por acaso, os forasteiros transformaram o sertão paranaense num sertão ilustrado. Beatriz Segall foi tocada por esta história que ela ainda não conhecia e, prontamente, aceitou ler o meu livro e, dias depois, fazer a leitura. Foi o último trabalho cênico dela. Um ano e cinco meses depois, Beatriz morreu vítima de problemas respiratórios.  
 
O lançamento ocorreu na livraria Cultura no Conjunto Nacional em São Paulo em 26 de abril de 2017. Mesmo com a voz fragilizada, a eterna Odete Roitman brilhou intercalando a leitura do livro com os depoimentos dos descendentes das famílias perseguidas pelo nazifacismo. A intérprete da megera que retorna à televisão brasileira nos próximos dias, pelo menos, para todos ali presentes na livraria, conseguiu estilhaçar a imagem fria e perversa da vilã que tanto a marcou ao longo de todos esses anos. Impossível, agora, não lançarmos um novo olhar para a atriz e sua personagem depois de vê-las, poeticamente, com os pés na terra vermelha do Paraná para iluminar um trágico episódio da História que jamais poderá ser esquecido.  
 
* Doutor em Letras pela USP e Sorbonne Université – Paris. Autor da tese A Bíblia segundo Balzac: Deus, o Diabo e os heróis bíblicos em A Comédia Humana. Jornalista, escritor, finalista do Prêmio Jabuti em 2003 

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