Com a marca da ironia corrosiva, envolta pela forte inspiração ética nos negócios públicos, o escritor Graciliano Ramos (1892/1953), um dos maiores do Brasil, eleito prefeito de sua cidade natal, Palmeiras dos Índios, no Estado de Alagoas, exerceu o cargo por dois anos (1928/1930), renunciando-o em 30 de abril de 1930.
O jornalista David Lucena, da Folha de São Paulo, ventilou excelente matéria sobre ele no dia 10 de abril último, na qual, evidentemente, menciona os dois relatórios, que fogem “à escrita burocrática e mais se aproximando de sua literatura social, podem ser uma espécie de manual politico irônico par os prefeitos dos dias de hoje”.
Esses relatórios, Graciliano Ramos os enviou ao governador do Estado, que o apoiara em sua eleição. Lucena estabelece conexão entre a prática política antiga e a atual, destacando que políticos atuais desconhecem, e não repetem, a modéstia de Graciliano. No entanto, ele reconhece não existir hoje a fraude eleitoral da Primeira República.
Esses relatórios de prestação de contas cedidos pela editora Record, que os publicou em 1962, são objeto de pequena publicação da Entre Livros, com o subtítulo “Raridades para ler e colecionar”. Ela traz primoroso prefácio do neto de Graciliano, Ricardo Filho, escritor de obras infanto-juvenis, tal como o pai, Ricardo Ramos, escritor também.
Essa excelência do prefácio não é só pela revelação como o pai lançou aos filhos menores a isca para aquisição do hábito da leitura, recomendando preparação para lerem os livros do avô, lidos quando adultos.
Particularmente, ele conta o roteiro que lançou o avô no mundo das letras, com a publicação de seu primeiro livro “Caetês” (1933).
Os relatórios tinham sido publicados no Diário Oficial do Estado de Alagoas e pela sua natureza nada burocrática, e com qualidade literária, eles chegaram ao conhecimento do poeta e editor, Augusto Frederico Schmidt, que, impressionado, quis saber se havia outro texto para publicação, recebendo de Graciliano os originais da obra “Caetês”. Recebeu-os e saiu, para uma noitada na Lapa.
Logo em seguida percebeu que aquela cópia fora perdida. E, um ano depois, quando intelectuais, como Jorge Amado e outros, empenharam-se para que fosse publicado, o editor a encontrou no bolso de uma capa de chuva.
Graciliano Ramos, estilo enxuto, explicava sua arma e sua elegância, dizendo “a palavra não foi feita para enfeitar, brilhar, como ouro falso; a palavra foi feita para dizer”. E, foi com ela que ele contou a história da miséria brasileira nos livros “São Bernardo” (1933) e “Vidas Secas” (1938). Como contou no seu primeiro Relatório a corrupção, que corria solta no município, dentro da administração e fora dela, com cada uma das autoridades tirando o seu. Foi candidato porque não era político.
Foi certamente, em razão de suas palavras, que o governo de Getúlio Vargas o prendeu, em 1936, ficando encarcerado por 11 meses no Rio de Janeiro, sem saber a razão de sua prisão, nem porque nela permaneceu, longe da sua terra.
Afinal, ele se reconhecia como um “revolucionário chinfrim”. “Se todos os sujeitos perseguidos fizessem como eu, não teria havido uma só revolução”. As armas dele eram de papel, disse, na anotação de David Lucena.