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Olhar visceral para as questões humanas

Por Luiz Carlos Merten, especial para o Estadão

Garoto – uma criança -, Cláudio Assis batia de porta em porta, em Caruaru, no interior de Pernambuco, onde nasceu, atrás do irmão que sumiu na maternidade. “Viu meu irmão, conhece meu irmão?” Foram anos nessa busca. Claudião, como é chamado, virou diretor de cinema, um autor a quem se devem grandes filmes.

Radical na estética e nos temas, ele está de volta aos cinemas, nesta quinta, 5, com o lançamento de Piedade. O irmão, finalmente reencontrado. Poderia ser “Piedade, Senhor”, por essa humanidade atormentada, frágil, por esse Brasil que não para de contabilizar mortos na pandemia, mas é Piedade, a praia do Recife.

Assis conversa com o Estadão pelo telefone, de Olinda. “É trágico que poucas semanas antes desse lançamento tenha havido dois ataques de tubarões em Jaboatão, no trecho próximo à igrejinha da Piedade. Tem tudo a ver com o filme, com o desequilíbrio ambiental que está na origem da trama.” Na praia da Saudade, em Piedade, o bar de Dona Carminha, Paraíso do Mar, que ela administra com o filho. Chega Aurélio, um executivo de São Paulo, representando a empresa petrolífera – Petrogreen – que quer expulsar todo mundo de suas casas e empreendimentos para garantir o melhor acesso aos recursos naturais da região.

Petrogreen sugere algo clean, ecológico. É fake. Aurélio é interpretado por Matheus Nachtergaele, Irandhir Santos faz o filho que vive com a mãe, e ela, Dona Carminha, é Fernanda Montenegro, realizando o desejo de filmar com Cláudio Assis, o transgressor. Ele sonhava com ela no filme, Matheus ajudou a fazer a ponte, Fernanda veio, toda entregue ao papel. Aurélio trará à tona segredos que conectam essa família a Sandro, que tem um cinema pornô no Centro do Recife. Sandro/Cauã Reymond tem saudades da mãe que não conheceu e um filho, Gabriel Leone, contestador. Segredos serão revelados, mistérios, desfeitos.

Matheus faz uma bela definição de Piedade, que vem se somar aos outros grandes filmes brasileiros do ano – Acqua Movie, do também pernambucano Lírio Ferreira, Cine Marrocos, de Ricardo Calil, e Veneza, de Miguel Falabella. Diz que o filme de Claudião, seu parceiro, seu irmão, “é sobre a perversão do ultracapitalismo na praia dos afetos”. E Claudião, contente por ter o filme nos cinemas, daqui a pouco no streaming – “Precisamos desse canal para dialogar com a sociedade”. E mais – “O filme é baseado em fatos, mas é ficção. No final, o dedico à minha mãe porque ela faz parte dessa história. É sobre o que está acontecendo no Brasil a toda hora”.

Quando Piedade estreou no Festival de Brasília, em 2019, a questão ambiental estava na ordem do dia – e quando não está? – por conta das manchas de óleo no litoral nordestino. Agora, são os ataques de tubarões junto à costa. Cláudio Assis filmou no começo de 2017, depois teve um AVC. O filme só ficou pronto há dois anos, deveria ter estreado no ano passado, mas veio a pandemia. “Piedade resiste a todos esses adiamentos e percalços. As questões ambientais e sociais são permanentes, existem há muito tempo e estão acima dessas contingências de datas.”

Cláudio Assis pertence a uma geração que lutou muito para fazer seu cinema. Ver tudo isso agora desmoronando por causa desse governo é motivo de apreensão. “Não é só o cinema que tem de reagir, é a sociedade.” Em sucessivas entrevistas, ele já contou que pensava numa atriz espanhola, como a mãe dele, para fazer Dona Carminha. Mas aí Matheus Nachtergaele fez a ponte com Fernanda, ela topou na hora – e ainda disse que sempre quis trabalhar com ele. Encontraram-se numa livraria do Rio. Por obra e graça dos deuses do cinema, quem chegou ali por acaso? Cauã Reymond! Matheus já estava no elenco, Irandhir Santos foi chamado. “Esses dois (Matheus e Irandhir) têm de estar comigo em tudo que faço. Nesse filme, Irandhir sou eu, cara…”

Marcello Ludwig Maia tem produzido os filmes de Cláudio Assis desde Amarelo Manga, de 2002, na República Pureza. Associaram-se em Piedade Cláudio e Camila Valença, da produtora Perdidas Ilusões. Todos esses nomes de empresas dariam títulos de filmes. Perdidas Ilusões, o fim das utopias, “mas não podemos desistir nunca”. Assim como nunca desistiu de procurar o irmão, Cláudio Assis há 20 anos persegue o projeto de outro filme que agora vai sair, quando a pandemia permitir – Gigantes por Natureza. O Brasil, e os brasileiros. A força do povo resistindo a tudo, ao horror instalado no Brasil. “Esse governo é…” – Claudião nunca teve meias-medidas.

Cauã Reymond detesta ser chamado de galã, mas tem a (fina) estampa do galã global. Faz um papel inesperado de gay, com direito a cenas ousadas. Gabriel Leone faz o filho contestador, Marlon Brando. “As pessoas que você critica são as que nos dão dinheiro” – a frase surge numa discussão entre pai e filho. Sexo e desejo, capitalismo e afeto, capitalismo versus afeto. Quem acompanha a trajetória do autor sabe que cinema, para ele, não é mera diversão. “É engajamento que você tem de ter com seu caráter, com a sociedade. É verdade no olho.” Todo filme de Assis é de processo, com intensa participação dos atores e técnicos – é o segundo filme dele fotografado por Marcelo Durst, após Big Jato.

Os anteriores foram fotografados por Walter Carvalho – Amarelo Manga, Baixio das Bestas e Febre do Rato. Encontrar a beleza da sordidez sempre foi um de seus objetivos. A vida, nos filmes dele, nunca é pasteurizada. Dessa vez, e por exigência de ‘Dona’ Fernanda (Montenegro), houve trabalho de mesa com os atores. “Ela pediu a leitura do roteiro e nós fizemos, não numa mesa, mas numa varanda. Claudião ficou meio impaciente e saía de vez em quando, mas o trabalho foi importante”, conta Matheus.

O resultado é um dos grandes filmes brasileiros atuais. Cláudio Assis, mais uma vez, se excede. “Foi um filme que deu trabalho, deu prazer, deu sensação…”, ele já havia dito na apresentação em Brasília. Uma pichação, no filme, dá conta do grau de provocação do diretor – “O petróleo já foi nosso, hoje somos do petróleo”. Na praia arruinada, as questões humanas são sempre viscerais para Cláudio Assis, mas ele nunca perde de vista a política. É o que faz de seu cinema, mesmo num ano que está sendo especial, tão grande.

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.

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