Por Julio Maria
Tudo o que passava pela frente de Riachão virava música, tudo. Um amigo que se lamentava da mulher, uma briga com a patroa, a saudade da mãe, um caminhão estacionado na praça, uma gripe curada com uma pitada de tabaco. Isso começou aos 9 anos, quando ele ainda era só o moleque Clementino da Rua Língua de Vaca, bairro Fazenda Garcia, nas barbas de Salvador, aprendendo a ler e sentindo crescer uma dor no peito, uma pressão, algo que não saberia explicar nem aos 90 anos. Um diabo de uma dor que doía, incomodava, e que ficou lá por um dia inteiro até que, em um movimento involuntário, jorrou de sua boca como uma mistura de canto com choro, de grito com canção, acabando com a agonia.
Riachão foi o último de uma era não do samba baiano, mas de todo o samba. Malandro que se chamava assim com um prazer de criança, tinha a imagem espelhada em outros três cronistas das ruas de barro, portadores de chapéu almofadinha, sapato lustrado e uma agilidade incomparável em fazer a vida caber em quatro estrofes e um refrão: Adoniran Barbosa, de São Paulo; Jackson do Pandeiro, da Paraíba; e Bezerra da Silva, que Pernambucano emprestou ao Rio. Não é justo que Riachão seja enterrado agora, aos 98 anos, morto na madrugada desta segunda, 30, não de vírus, de praga ou de tumor, mas de viver até o coração não aguentar mais, apenas como o autor de Cada Macaco no Seu Galho.
O samba é mesmo o seu mais famoso, regravado em uma ponta por Caetano e Gil, em 1972, e, em outra, pela Gang do Samba em 2000, ainda durante o reinado da axé music. A axé, por sinal, aquela forma de vida considerada menor pela crítica e por muitos que a julgavam uma maldição enviada das terras da Bahia nos anos 90, foi uma bênção dos céus ao samba de roda do Recôncavo da Bahia, por expor toda a força de uma cadência rítmica única e irresistível, como tentou dizer Paulinho da Viola, e uma glória ao recolocar Riachão na boca das pessoas depois de duas décadas de sumiço.
Mas Cada Macaco no Seu Galho, que ele fez para descrever a separação da mulher amada, não foi sua primeira revolução. Riachão formou duplas nos anos 1940, fez parceria com o amigo Sabiá, cantou em um trio vocal na Rádio Sociedade da Bahia nos 50 e compôs e entoou moda sertaneja em um lugar que não parecia ter vocação para isso. Curioso que este é um outro Riachão, de características musicais bem distintas do sambista, um homem que parecia nascido no interior de São Paulo ou de Minas Gerais, um baiano de Salvador provando que o sertão não está na terra, mas no peito. “Quando nóis tiver um fio / nóis bota ele pra estudar / Depois que tiver crescido, nóis ensina ele a tocar / E quando nóis tiver veinho / senta na porta mó de apreciá”, cantava emocionado e de voz suave Linda Morena.
Historiador sem alfarrábios, jornalista sem perguntas, Riachão biografou uma Bahia sobretudo dos anos 50 aos 70 olhando para as costas das belezas que estonteavam Dorival Caymmi. Se Caymmi via a poesia, Riacho via o sorriso. Se Caymmi procurava o mar, Riacho queria a gente. Toda e qualquer canção tinha por trás uma história real, passada por ele mesmo em suas andanças pelas praças, pelas ruas, por entre as 15 baianas do acarajé, pelo Elevador Lacerda, pela Praça da Sé, pela Avenida Sete de Setembro, pelo Campo Grande. A história do samba Baleia da Sé é uma delas.
Estava vindo Riachão de ônibus com um amigo de birita pela Rua Chile quando viram o alvoroço. Ao descerem, perguntaram o que se passava e as pessoas, assustadas, apontavam para a Sé. “A baleia gigante está lá! Vá ver.” Mesmo estranhando o fato de haver uma baleia bem longe do litoral, Riacho correu até avistar o bicho: um diacho de um caminhão gigante, como Salvador nunca havia visto. “Foi a primeira vez que um caminhão chegou a Salvador”, disse no programa Ensaio, da TV Cultura. Vendo aquela imensidão de carro à sua frente, Riachão falou ao amigo que sentia um samba lhe chegar. “Rapaz, o samba está descendo aqui.” Correu até o segurança que cuidava do cordão de isolamento, mentiu dizendo que era um jornalista dos Diários Associados e conseguiu passar pelo bloqueio. Ao encontrar o dono do carro, um norte-americano de dois metros de altura, olhou para cima e disse: “Quer ouvir o samba que eu fiz para seu caminhão?”. O gringo não entendeu, mas ouviu assim mesmo: “Olha, eu fui para a cidade despreocupado / Quando cheguei na Sé, vi um povoado / Oi, minha gente, fiz um perguntado / Responderam que a baleia é quem tinha chegado”.
E tudo isso porque, lá no começo, Riachão olhou para uma fresta no paralelepípedo da rua e viu um folha de revista rasgada bem na frase: “Se o Rio não escreve, a Bahia não canta”. Ele era menino, tinha 12 anos, mas saiu machucado. Chamaram sua Bahia de fracasso. Chegou em casa e compôs uma, duas, três. Deixou mais de 600.
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.