Tribuna Ribeirão
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O tempo escorre pelas mãos 

Luiz Paulo Tupynambá 

Jornalista e Fotógrafo de Rua 

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Num dia de sol de quase dezembro de 1982, o toca-discos de uma loja especializada no cruzamento da Duque de Caxias com a Saldanha Marinho tocava alto para todos ouvirem os versos “O tempo voa, amor, escorre pelas mãos, mesmo sem se sentir…”. Lembro-me de que parei para escutar, pela primeira vez, a bela canção. Os meus vinte e poucos anos se identificaram na hora com a letra, com sua mistura fina de rock, new wave e “riff” de guitarra, nítida imagem de liberdade, surfe e Rio de Janeiro. 

O álbum Tempos Modernos, de Lulu Santos, tinha esta canção como “música de trabalho”. Foi um míssil que acertou o alvo das paradas de sucesso da época. Tornou-se um marco do “rock” nacional. Conseguia mostrar em verso e música a linha divisória entre o mundo “antigo”, cheio de deveres e obrigações, com compromissos que a juventude não compreendia mais, com o novo mundo, a “New Age”, onde, para ser feliz, era necessário aproveitar cada milésimo de segundo da vida como se fosse o último, pois ninguém vive do passado, as verdades são individuais e o comunitário não existe por lei, mas sim por associação dos espíritos e dos corpos. O “zeitgeist” daqueles anos capturado em versos simples e música descolada. 

Transições nunca são totalmente pacíficas. Exemplo são as estações do ano, quando, na transição de uma para outra, são registrados os mais violentos eventos climáticos. Estamos no final de uma transição econômica que podemos comparar com a segunda metade da Revolução Industrial. A chegada da energia elétrica e do motor a combustão de derivados fósseis fez surgir a indústria na forma como a conhecemos hoje. Os transportes levavam cargas e passageiros a distâncias e velocidades inimagináveis para a população da época. De forma similar, agora estamos na transição de uma economia analógica para uma economia digitalizada. Naturalmente, ocorrerão mais turbulências que irão afetar nossas vidas e provocarão surpresas e desconfianças. 

A indústria fonográfica tinha como base econômica a venda de LPs, os “bolachões” de vinil sulcado. De repente, teve que se adaptar à presença do CD. Por vários motivos, o CD era mais viável economicamente. Por quase três décadas, o CD, acompanhado do DVD com shows dos artistas, foi absoluto. Era o reinado da MTV, a bisavó dos “clips” veiculados no YouTube. Em 2024, o que mais interessa para o produtor de músicas é o número de audições da música no Spotify ou Apple Music e as visualizações do “clip” no Vimeo ou Instagram. Cada “ouvida” ou “olhada” na música gera um valor “X” para os produtores e artistas, além do valor dos “merchandisings” de grifes de roupas, adereços, carros e outras coisas que aparecem nos “clips”. Um segundo num “clip” de artista no topo vale muito. O sucesso musical hoje está na Internet. Não é um bem material, mas sim uma experiência vivida no mundo digital. 

Para gravar sua canção em estúdio, Lulu precisou de uma banda formada por ele próprio, Lincoln Olivetti nos teclados, Serginho Herval na bateria e Liminha (ex-baixista dos Mutantes, e também o arranjador e diretor técnico do álbum) no baixo. Quatro músicos, vários instrumentos e um estúdio com o equipamento analógico mais moderno da época. Custo alto de produção, gastos com a prensagem dos discos, impressão das capas, embalagem e logística para entrega. 

Hoje, um adolescente com um computador razoável, algum conhecimento musical, usando Inteligência Artificial para “samplear” beats e vozes e tempo livre, pode produzir um “hit” de sucesso maior do que foi o disco do Lulu, gastando mil vezes menos. Sem sair de casa nem para a divulgação, esse jovem pode se tornar um fenômeno de visualizações e audiência no Japão, na França, Reino Unido, Estados Unidos, etc. Basta dar uma olhada nos números conseguidos no Spotify por alguns MCs brasileiros da cena Phonk, que é um tipo de funk brasileiro mais agressivo. Só pesquisar o termo “brazilian phonk” no Google ou no Youtube que você terá oportunidade de conhecer um novo fenômeno mundial de um “ritmo” brasileiro saído das comunidades suburbanas do Rio e de São Paulo que você nem tenha ideia de quem é. 

Mas, se por um lado o mundo digital trouxe uma liberdade antes inimaginável nos tempos analógicos para divulgar mensagens musicais, pessoais e políticas de um indivíduo ou grupo, também está trazendo a individualização exacerbada e promovendo uma quase sectarização em grupos de poucos indivíduos. É como um hedonismo quase doentio, refletido no espelho de um avatar qualquer. E os avatares, como arquétipos junguianos de uma nova era, vão sendo desvendados aos poucos, nessas novas formas de arte e comunicação. E a rapidez da mudança de aceitação de certas mensagens ou avatares padrão exige uma renovação constante da mensagem e do mensageiro. E o tempo que antes escorria pelas mãos sobre a guitarra, hoje voa ultrassônico por entre os dedos no teclado do smartphone. 

O ano de 2024 será mais um prego no caixão da Era Industrial. Assistiremos a uma nova rodada do uso da Inteligência Artificial, aprofundando seu impacto sobre as relações humanas e sociais. Que seja um ano que traga entre essas mudanças um redirecionamento em busca de um mundinho mais solidário e tranquilo, ao menos. Nós, meros carregadores de ideias e palavras, continuaremos nossa sina que é pensar a vida enquanto os “felizardos” donos do mundo, que não precisam fazer isso, apenas usufruem. Semana que vem tem mais, até. 

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