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O som e a fúria

Entre os soluços e o ronronar da minha barriga fami­gerada relegada à fome, reconheço o som do alvorecer característico de um país tropical, também pudera não ouvir o canto das maritacas alvoroçadas. Assim desperto meus dias e penso como poderia ser a vida vivida, não fosse uma jornada de trabalho escravista pela frente.

Quem sabe até me dedicaria à arte de observar pás­saros, esses sim detêm a liberdade da própria existência, quanto a mim, pobre de mim, um maltrapilho faminto, afundado em dívidas com o patrão, me transformei num sub-humano jogado nessa estopa fedorenta que nada mais me resta a não ser levantar a carcaça e tocar o dia que o labor arde lá fora.

Na rádio AM que nunca desligo a fim de distrair a fome, ouço, enquanto visto minhas vestes muxibentas, as mais variadas entrevistas com homens cultos de falas requintadas e eles discorrem suas teses bíblicas coinci­dentemente sobre sub-humanos como eu, que em 2023 no Brasil ainda jazem postergados a viver no sistema de escravidão.

Por que se torna tão difícil para esses homens ditos intelectuais encararem a verdade, que a Lei Áurea é uma lei morta? Veja bem o meu caso, sou um negro, não re­cebo salário e os míseros reais que o FDP paga pelo meu trabalho extenuante são deixados no mercadinho dele próprio com a compra da comida podre que rurrumino feito um inseto.

Então, meio sonolento e faminto faço um movimento rastejante para a direção da porta, mas, totalmente me­tamorfoseado num réptil, lembro do ditado que meu pai um dia me ensinou – disse ele, “filho o ser humano pode não ser, mas deve parecer ser”.

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