Por Adalberto Luque
Noite de 08 de setembro de 2023. Uma criança de apenas quatro anos é levada pelos pais à Unidade de Pronto Atendimento (UPA) do Simioni, na zona Norte de Ribeirão Preto. Eles relataram estar à procura de ajuda médica para a filha, estava aparentemente desacordada.
Funcionários que atenderam a menina perceberam sinais de violência física e sexual. Ela tinha dentes quebrados, hematomas no rosto, traumatismo craniano e ferimentos na vagina e região anal. De acordo com o boletim de ocorrência, a criança já estava morta há cerca de 12 horas antes de ser levada ao hospital.
O casal foi preso em flagrante. A mãe alegou ter passado o dia trabalhando fora e que, ao chegar, viu a filha desacordada e quis procurar socorro. O homem disse que teria tentado acudir a filha, que teve febre o dia todo. Ambos não souberam justificar os ferimentos que teriam causado a morte da menina.
O caso chocou a cidade, pela brutalidade. Mas não é isolado. De acordo com dados divulgados pela Secretaria da Segurança Pública (SSP), Ribeirão Preto registrou 135 ocorrências de estupro de vulnerável no ano passado. Um caso de violência sexual a cada 65 horas.
É o maior número desde 2016, quando os casos de estupro foram separados entre os de mulheres e os de vulneráveis na divulgação estatística da SSP. Se juntados todos os casos de estupro, a cidade registrou 192 no ano. Um estupro a cada 45 horas. Disparadamente o maior número de casos desde que os dados passaram a ser divulgados pela SSP em 2001.
Mas no caso de vulneráveis, a situação é extremamente alarmante. Pelo Código Penal Brasileiro, é considerado estupro de vulnerável a conjunção carnal e atos libidinosos cometidos contra menores de 14 anos, independentemente de seu consentimento. Além disso, são vulneráveis pessoas que não têm o necessário discernimento para a prática do ato, devido enfermidade ou deficiência mental, ou que, por algum motivo, não possam se defender.
Mais que hediondo
O estupro de vulnerável é muito mais que um crime hediondo. Causa danos irreparáveis às vítimas. Segundo Luciana Temer, advogada a presidente do Instituto Liberta, o problema sempre existiu e é silenciado. “Em uma pesquisa que o Instituto Liberta encomendou, 32% das pessoas adultas entrevistadas declarou sofrer alguma violência sexual antes dos 18 anos. Desse universo, apenas 11% denunciaram. Se todas tivessem denunciado, teríamos números muito maiores que os atuais”, avalia.
Luciana foi Secretária da Juventude, Esporte e Lazer do Estado de São Paulo e Secretária de Assistência e Desenvolvimento Social da cidade de São Paulo. Ela participou do Instituto Liberta desde sua fundação.
“O Liberta nasceu em 2017 para enfrentar a violência sexual contra crianças e adolescentes no Brasil. É um instituto de comunicação e conscientização sobre o problema. Apesar dos números alarmantes, esse não é um problema que está na consciência da sociedade brasileira. A gente precisa fazer com que a sociedade entenda o tamanho e a gravidade para todos nós, de fechar os olhos para essa violência. A gente advoga por políticas públicas, mas a gente entende que a comunicação e a conscientização sobre o problema são muito importantes. Fazer o Brasil falar sobre violência sexual infantil para ter consciência e ajudar a mudar uma cultura, pressionar por políticas públicas de enfrentamento”, diz Luciana.
O perigo mora em casa
Em publicação feita no Anuário Brasileiro de Segurança Pública, Luciana relata que a maioria das vítimas de estupro no Brasil não é mulher, são meninas. E a casa onde as crianças moram, em sua maioria, é o local de maior incidência.
“A residência continua sendo o local mais perigoso, onde 72,2% dos casos ocorrem. O local do crime á facilmente compreendido quando se sabe que, em 71,5% das vezes, o estupro é cometido por um familiar. Sim, dos estupros registrados com autoria, 44,4% foram cometidos por pais ou padrastos; 7,4% por avós; 7,7% por tios; 3,8% por primos; 3,4 % por irmãos; e 4,8% por outros familiares. Importante registrar que 1,8% dos casos apontam a mãe ou madrasta como autora da violência. Eu apostaria que em boa parte desses registros a mãe é parceira do companheiro no estupro, mas não temos este dado. Um dado novo que chama a atenção é que 6,7% dos registros apontam vizinhos como autores da violência e há 29 registros contra professores. Sim, professores também são autores de violência sexual, mas é sempre preciso lembrar que numa proporção infinitamente menor do que os familiares”, diz Luciana.
Sobre o crescimento, a advogada acredita que o que está mudando é a disposição para registrar a ocorrência. A ideia que se tinha antes era que a violência sexual infantil era restrita às baixas classes sociais. “Violência doméstica era coisa de mulher preta periférica. Hoje sabemos que está em todos os ambientes e classes sociais. Fala-se sem constrangimento. Vemos Luiza Brunet e Ana Hickmann falando abertamente sobre o que sofreram. Isso valoriza o empoderamento e leva mais mulheres a denunciar. Só tirando estes crimes da invisibilidade é que poderemos de fato enfrentá-los”, conclui Luciana.
“Há vítimas que não entendem que estão sofrendo crime”
A delegada Jamila Jorge Ferrari, coordenadora estadual das Delegacias de Defesa da Mulher (DDMs) explica que é estupro de vulnerável é um crime subnotificado. Na maioria das vezes envolve vergonha, medo, ameaças. “Às vezes a pessoa sequer entende que foi vítima de estupro, ou por ser muito jovem ou mesmo por não saber”, relata.
O aumento dos registros, em sua opinião, é importante para que se possa punir a autoria do crime. “Vemos que as pessoas estão mais confiantes com a Segurança Pública. Além da proteção, esse registro possibilita buscar apoio. O número é terrível, mas indica maior confiança na polícia e que a vítima se sente amparada”, aponta.
Jamile explica que a DDM tem um ambiente mais acolhedor para receber as vítimas, com brinquedotecas. O atendimento é feito por mulheres especialmente treinadas na Academia de Polícia para esse fim. Mas a denúncia pode ser feita em qualquer delegacia. E, normalmente, é notificada a partir da entrada da vítima em hospitais, onde é medicada contra doenças sexualmente transmissíveis e examinada. Se ocorrer o contrário, a DDM mesmo encaminha a vítima para o hospital.
A delegada acrescenta que existe uma rede de apoio e acolhimento. As redes são ligadas às prefeituras de cada cidade e envolvem Conselho Tutelar, CRAS, Ministério Público, Judiciário e outros órgãos. “Há casos em que o adolescente precisa ser retirado do convívio com o agressor, que pode ser seu pai, mas é preciso o pagamento de pensão. Isso é agilizado judicialmente pela Defensoria Pública”, adianta.
De acordo com Jamile, há casos em que a própria mãe é conivente com o agressor ou acaba preferindo não saber, pela dependência financeira que tem com o agressor. “É importante denunciar para que as mães saibam que há recursos para que elas saiam desse ambiente. Estamos diante de situações sociais complexas e que atingem todas as classes. Existem sinais característicos, muitas vezes percebidos nas escolas, que acabam acionando o Conselho Tutelar. Há casos em que só assim se descobre. É importante o trabalho nas escolas, esse olhar atento”, aduz.
Mas a delegada acrescenta que, mesmo em caso de suspeita, qualquer pessoa tem o dever de denunciar. A denúncia é anônima e pode ajudar uma vítima de violência sexual infantil. “A denúncia é importantíssima. Temos o telefone 180 do governo federal e o 181 do governo estadual. Em grande parte dos casos, o agressor é um pai, padrasto, avô, tio, vizinho. Alguém muito próximo da criança”, conclui.
Medicação, encaminhamento e acompanhamento
A Secretaria de Estado da Saúde (SES) divulgou nota informando como atua. “O acolhimento às vítimas de estupro pode ocorrer em qualquer uma das unidades de saúde como, por exemplo, Unidades Básicas de Saúde (UBSs), Prontos-Socorros, Unidades de Pronto Atendimento (UPAs), hospitais, entre outras. Todas elas dispõem de profissionais habilitados para o acolhimento e, após o primeiro contato, os profissionais de saúde seguem um cronograma previamente estabelecido: primeiro são realizados exames ginecológicos e clínicos, em seguida é administrada medicação preventiva (contra doenças sexualmente transmissíveis) e, em seguida, os pacientes são encaminhados para Unidades Básicas de Saúde (UBSs) e Rede de Atenção Psicossocial (Raps) para acompanhamento.
O procedimento segue o mesmo protocolo para todas as vítimas, exceto para as crianças, que são acolhidas e encaminhadas pelo serviço de assistência social da unidade para o conselho tutelar dar prosseguimento na vara da infância. A equipe de saúde, junto com a assistência social, tem o papel de acolher a criança e a família e minimizar esse processo, que envolve exames de corpo de delito, abertura de Boletim de Ocorrência e remédios. Após esse processo, a criança também é encaminhada para acompanhamento clínico e psicológico.”