Abordados os romances de Gabriel Casaccia no texto anterior, importa tratarmos, agora, dos dois livros de contos do autor, “El guahjú” e “El pozo”, bem como, de sua peça de teatro, “El bandoleiro”. De acordo com especialistas, a transição do realismo superficial e costumbrista, ocupado em interpretar a vida cotidiana em seu viés literário e pictórico, bem como, os exagerados modos de ser e os costumes locais, para formas narrativas mais elaboradas, além de politicamente comprometidas, ocorreu, na Bolívia e no Paraguai, devido ao conflito armado que estas duas nações travaram entre 1932 e 1935, conhecido como Guerra do Chaco. Na Bolívia, Augusto Céspedes a inicia em 1936, com as estórias de “Sangre de Mestizos”, e, no Paraguai, Gabriel Casaccia o faz através da publicação de “El guahjú” (1938) e “El pozo” (1947). Para Josefina Pla, artista, poetisa e crítica de arte espanhola, o primeiro deve ser considerado como o ponto de partida vital da narrativa paraguaia, ao passo que, o segundo, como o iniciador de uma corrente universalista na mesma.
Em “El guahjú”, o autor adentra a memória dos habitantes de Areguá, tão apegados aos costumes e às tradições quanto ao medo de fantasmas e assombrações. Em ambientes taciturnos e tristes, sem luz elétrica e com velas que intensificam os traços dos personagens, o leitor, no conto homônimo à obra, vai indagar se o uivo de um cachorro poderia, ou não, ser a causa da destruição de um homem. Nele, dois irmãos, Tomás e Ceferino, são criados sozinhos pela mãe. Totalmente opostos um ao outro, Tomás, atarracado e taciturno, odeia Ceferino e vive às voltas de encontrar uma forma de pôr fim à vida do irmão. Por sua vez, Ceferino, o mais velho, franzino, doentio e jovial, ama o caçula, sempre procurando auxiliá-lo no que pode. Eis, então, que Ceferino morre e, Tomás, sinceramente abalado com isso, lamenta pelo ocorrido no túmulo do irmão. Não tarda para que Barcino, o cão do irmão falecido, incomodado com a atitude de Tomás no túmulo, passe a uivar sem trégua, acabando com a paz de Tomás. Este chega a pensar em eliminar o cão, mas, a cada tentativa, supersticioso, sempre desiste da ideia. Até que, em determinado momento, ele, resoluto, decide fazê-lo num barco. É, então, surpreendido com um golpe, não sabe vindo de onde, e só volta a ter paz quando pensa em acabar com a própria vida. O uivo lúgubre e misterioso daquele guahjú, parecendo, no silêncio da madrugada, a voz lamuriosa de um ser humano.
Um trecho? “Ele começou a acreditar que esse uivo era criação de sua fantasia. Desde que ela voltou do cemitério, ele estava perfurando suas orelhas, cavando em seu cérebro, picando seu coração. Às vezes, ele se tornava quase humano. Ele mal conseguia pensar, sua cabeça estava girando, como se ele fosse desmaiar… Ele tinha ouvido o lamento de Barcino novamente…e desta vez perguntou a todos os presentes…Eles responderam que não tinham ouvido nada.” Em conjunto, a obra se revela uma notável exploração dos mundos internos que dão razão e sentido à realidade humana do Paraguai.
Por sua vez, em “El pozo”, Casaccia dá continuidade ao estilo instrospectivo profundo de “El guahjú”, focando o que se passa na mente de seus personagens, retratados em seus piores conflitos. Em sua galeria, homens e mulheres vulgares, comuns, muitos deles à beira da loucura, torturados pelos seus medos, tristezas, dúvidas e aflições. Um trecho? “Amanhã ele também estaria lá, mas sem Clara, sem ninguém!…Na rua deserta…Clara ia saindo e era como se todos os habitantes da cidade estivessem saindo com ela. A solidão nunca iria deixá-la. Ficaria sozinho com o coração, ouvindo incessantemente as suas palpitações como quando caminhava sozinho e nada o distraía … Sua cabeça pesada e dolorida arrastou-o para o fundo daquele corredor escuro, longo, sem fim, como o poço de sua infância, de águas verdes, profundamente adormecido. A rua já estava cheia de sombras do crepúsculo. Alfonso queria se libertar de seus fantasmas e disse a Clara, a voz quase imperceptível, como se falasse contra a vontade dela. “Por que você não acende a luz do corredor?” E antes que Clara pudesse responder, Alfonso esticou o pescoço, olhando para aquele poço sombrio, não conseguindo ver seu fundo. Ele sentiu como se alguém o estivesse arrastando para o fundo, como se sua cabeça fosse uma bola de chumbo puxando para baixo. Ele estendeu os braços, agarrando-se a Clara, não sabia se se salvava ou se a carregava atrás de si em sua queda. E juntos, porque Alfonso não se livrou dela, eles começaram a rolar no espaço escuro. Eles nunca tocaram o fundo. A profundidade daquele poço parecia infinita. Alfonso sentia o zumbido do ar nos ouvidos … Parecia-lhe que Clara, a intervalos curtos, soltava dois gritos agudos, e que vinham gente; mas esse pensamento durou tanto quanto um relâmpago, porque imediatamente ele percebeu que isso não poderia acontecer, porque eles estavam rolando para dentro do poço, e porque ela segurava Clara com força pelo pescoço. Ele vislumbrou, como em um sonho, que ela agitava desesperadamente os braços, desfazendo as sombras, como se fossem crepes imateriais … Então ouviu o baque de seus corpos ao tocarem o fundo do poço”. De acordo com a crítica, em “El pozo”, clarividência, premonição, paramnésia e outros recursos viabizam, ao autor, descortinar verdadeiras obsessões, bem como, preocupações existenciais reiterativas, captadas do meio e expressas artisticamente. Tentativa penetrante de descobrir os mundos oníricos, metamorfoseados ou fantásticos que embasam a condição humana, Casaccia, em “El pozo”, expõe ao público a condição alienante, e desenraizada, do homem contemporâneo.
Finalmente, “El bandoleiro” (1932), primeira e única peça de Casaccia, de importante republicação uma vez que seu texto permaneceu quase desconhecido no Paraguai, pertence, de acordo com especialistas, a um período em que certas influências literárias em sua produção ainda são facilmente percebidas, neste caso a do dramaturgo espanhol Valle Inclán. De Inclán, Casaccia exercitou produzir textos com mais impacto social que estético. Deformando a realidade, o autor saía em busca de contrastes, cinismos, encantos e brutalidades da vida contemporânea. Por usa vez, a linguagem utilizada, pontuada de termos tradicionais, quase desconhecidos no espanhol falado no Paraguai, e os diálogos extensos, carentes de espontaneidade, revelam um autor ainda em busca do próprio estilo literário.