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O Paraguai e sua Literatura: AUGUSTO ROA BASTOS (3)

Na busca por uma linguagem própria, Augusto Roa Bastos passa a exercitar uma combinação da fala direta com locu­ções, fórmulas e expressões guaranis. Como resultado, o autor alcança um texto altamente poético, que passa a impregnar sua obra narrativa. Característica, esta, que pode ser verificada na primeira parte do volume de contos “Moriencia” e em seu grande romance “Yo el Supremo”. Entretanto, “Moriência”, em oposição a “Yo el Supremo”, composto por cinco relatos individuais, a saber, Moriencia, Nonato, Bajo el puente, Ración de león e Cuerpo presente, traz poucas referências a rela­tos de mitos guaranis. A publicação anterior, e em separado, de Nonato e de Bajo el puente, artesanais que são, guardam características da oralidade que as constituíram, revelando, por conseguinte, um aspecto artesanal que desconhece o que é originalidade e esforço criativo individual. Por sua vez, “Yo el Supremo” é um romance em que o autor, por meio da figura do Dr. José Gaspar Rodríguez de Francia, Ditador Perpétuo da República do Paraguai entre 1814 e 1840, ano de sua morte, e sem fazer a biografia deste ou um romance histórico, aprofunda-se na história de seu país. Nas palavras do autor: “En la obra de ficción, los hechos históricos, el ascenario mismo de la historia, constituyen el marco de una nueva realidad: la realidade imaginaria. Y esta realidad cristaliza, o mejor dicho, se dinamiza y vivifica en símbolos y en mitos que reflejan otra historia no necesariamente igual o parecida a la que nos repite la historiografia documental. No intenté hacer una biografía novelada del Supremo Dictador. Como personaje histórico, José Gaspar Rodríguez de Francia es un personaje único. No se le puede repetir y menos substituir por um personaje pretendidamente hecho a su imagen y semejanza, aun cuando fuera en el terreno de la ficción. Aquí unicamente yo podía intentar el desarrollo de una trama imaginaria em torno a un personaje mítico que en la novela ni siquiera tiene nombre; un personaje que ejerce el poder absoluto al servicio de uma causa en la cual encarna los intereses y el destino de una colectividad”.

Traduzindo, “Na obra de ficção, os fatos históricos, o próprio cenário da história, constituem o quadro de uma nova realidade: a realidade imaginária. E essa realidade se cristaliza, ou melhor, torna-se dinâmica e vivifica em símbolos e mitos que refletem outra história que não necessaria­mente o mesmo ou semelhante ao repetido pela historiografia documental. Eu não tentei fazer uma biografia ficcional do Supremo Ditador. Como figura histórica, José Gaspar Rodríguez de França é um personagem único. Não pode ser repetido e menos substituído por um personagem supostamente feito à sua imagem e semelhança, mesmo que fosse no reino da ficção. Somente aqui eu poderia tentar o desenvolvimento de um enredo imaginário em torno de um perso­nagem mítico que no romance nem tem nome; um personagem que exerce poder absoluto a serviço de uma causa na qual incorpora os interesses e o destino de uma coletividade”. De acordo com a crítica, tais palavras do autor deixam claro como, na obra, “se estabelecem as relações entre a ficção e a história, entre o personagem histórico e o mito encarnado por esse personagem, vivo e presente na coletividade, ainda hoje, tantos anos depois de sua morte. Isto quer dizer que os valores representados pelo regime nacionalista do Dr. Francia continuam sendo de total atuali­dade, e constituem um desafio ao leitor contemporâneo — ao paraguaio em especial — obrigado ao vaivém comparativo. A partir da visão de Francia, Roa reinterpreta a história e realiza uma trajetória prospectiva sobre o futuro do país”.

Em 2001, o lançamento, no Brasil, do romance “Contravida”, de Roa Bastos, pela Ediouro, abordando a história de um prisioneiro político paraguaio (escritor e jornalista tal qual o autor), único sobrevivente de uma fuga prisional por um túnel que desmorona, faz com que a crítica veja, na obra, um misto de ficção e biografia. Único sobrevivente do terrível acontecimento, e do assassinato de seus companheiros de cárcere, fuzilados por terem sobrevivido, o personagem narrador some por uma vala, sendo dado como morto. Ajudado por mulheres de Chacarita, bairro da cidade argentina de Buenos Aires, que não deixam morrer, o mesmo disfarça-se numa roupa de pastor guerrilheiro que havia sido assassinado num avião do Brasil e, “invisível”, tem a chance tão esperada pelo mesmo ( e, por que não, pelo próprio autor?): voltar a percorrer seu país sem ser perseguido por ninguém. Nem mesmo por sua fama.

Em uma entrevista, em 2017, ao ser questionado sobre qual seria, para ele, a função que o escritor tinha em um mundo caminhando para a barbárie, afirma o autor: “Creio que a literatura, como toda arte, assume um dever, talvez inconscien­te, mas é um dever: a necessidade de servir ao outro. E servir quer dizer estar em atitude de entrega, oferecendo. Isso cria laços solidários que estão conspirando justamente contra a cadeia de barbarização que não reconhece valores deste tipo. A materialização e a desumanização coletivas sempre tiveram vai-e-vens… As pessoas reagem e se unem, como aconteceu na Argentina. Essa participação já é, em princípio, solidariedade. É preciso dar-lhe mais tempo. Pensemos que se a sociedade começa com mais de um (dois já são um germe de comunidade, porque nada do que um faça deixará de afetar ou beneficiar o outro), ambos têm deveres. E, neste sentido, a educação para a participação tem que ser chave. Viemos de uma educação bastante individualista e isso não nos ajuda para nada. Pense que um só homem não é nada frente o universo. Está bem defender o próprio, o modo particular de cada pessoa se expressar no mundo, mas não ficar apenas ali. Temos que saltar essa barreira autista e saber escutar e comunicar-se com o amplo, fascinante e ao mesmo tempo complicado mundo contem­porâneo. E, para isto, o escritor é o guia mais autêntico para nos acompanhar nos caminhos intrincados da alma humana. Pense no Dante, que deve atravessar ou ir além, e entra no Inferno acompanhado de Virgilio, o escritor que mais admirava. E Virgilio é o anfitrião, mas ao mesmo tempo é quem revela os segredos daquelas profundidades. Essas almas torturadas que são o reflexo dos mais humanos, tudo isto o revela um escritor, não Deus, a quem Dante somente vê ao fim do caminho”.

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