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O mundo em retalhos

Os tiros foram disparados. Corpos caídos inertes, sem mais um respiro, sem mais um ruído, sem mais esperança. Da janela de um quarto de hotel, um homem decidiu a vida de outros homens, decidiu o caminho da dor de famílias e amigos. O maior ataque dos Estados Unidos tirou a meiguice da menina de shortinho curto, do moço de botas de vaqueiro, de jovens que celebravam a alegria de serem jovens. O que poderiam ser fogos de artifício iluminando os céus eram raios de ódio por desconhecidos, ódio pela existência, ódio, apenas ódio.

Vivemos um tempo estranho. Tempo em que a solidariedade é aplaudida por ser rara, tempo em que a intolerância se transformou em um adulto grande e volumoso. A figura de monstro é repleta de várias faces, de corpos de tamanhos e pesos diferentes, mas é possível ver que a aberração é constituída de pessoas. Pessoas boas, inclusive, pessoas capazes de distribuir caridade, de ajudar uma velhinha a atravessar a rua, de pagar suas contas em dia, de sorrir para os vizinhos e dar bom dia. O problema é que essas mesmas pessoas são também capazes de cuspir fogo sem piedade a quem aja com alguma divergência ao caminho que percorrem, a quem pense, mesmo que em poucas questões, diferente do estabelecido em suas mentes.

Estamos no tempo da indecência. Não a que atribuem à mãe que deixou a filha tocar no corpo nu de um bailarino em performance em museu e que agora é alvo de massacre virtual. É a indecência de ser sem ser, a indecência da surdez, do ataque pré-estabelecido. No mar cibernético que hoje estamos, jogam-se palavras e julgamentos com o mesmo efeito de fuzis estilhaçando a dignidade de desconhecidos. Não pela janela de um hotel, mas pela janela de um computador.

Qual a abrangência da retaliação ao ato da mãe, que acredita não haver mal em levar a filha pequena e deixá-la tocar nos pés e tornozelos do artista desnudo? Talvez em outros tempos, os olhares de reprovação, ou até mesmo uma reprimenda de alguém ao lado. Mas com a exposição do vídeo na internet, as consequências são imensuráveis. A repercussão e o número de manifestações contrárias ao gesto da mãe e ao museu por permitir a entrada de menores provavelmente vão deixar na menina traços marcantes, traumáticos.

Como estará ela enfrentando os coleguinhas de escola, os olhares dos pais deles, o padeiro da esquina? Com que coragem tenta desesperadamente proteger a mãe que ama? Como ficará esta menina que nem sabia que existia a palavra pedofilia e que agora é alvo de campanha contra a prática doentia e temida. O tal vídeo já foi tirado do ar, mas os comentários e fotos da mãe continuam proliferando na rede.

Há quem não tenha se sensibilizado com as dezenas de mortos e centenas de feridos em Las Vegas, há quem mesmo tenha dito que fãs deste estilo de música são geralmente republicanos e que não deixam saudade por aqui. Há quem diga que a mãe da menina poderia ser apedrejada como em culturas que ainda praticam tal barbárie. Onde se esconderam os bons sentimentos da humanidade? Quando foi que eles foram aprisionados enquanto o que há de mais perverso no ser humano foi liberado?

Entre os cacos que ficam deste tiroteio, do sangue grudado no chão, das lágrimas dos sobreviventes, do horror permanente na memória, do que a garotinha ainda terá que enfrentar, costura-se um mundo cheio de retalhos com linha tão frágil que pode arrebentar ao menor sopro, mesmo que um sopro infantil.

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